domingo, 15 de fevereiro de 2015

Mitos de Ontem e de Hoje Existe um tesouro da Flor de la Mar? O arranque dos Descobrimentos. Paulo Jorge Pinto. «O fabuloso tesouro da Flor de la Mar não passa, portanto, de ‘um mito’. Não deixa de ser um tesouro, cujo interesse histórico não pode ser minimizado…»

jdact

Mitos
«(…) A primeira questão que intriga os estudiosos sobre este assunto é: onde ocorreu o naufrágio? As fontes dizem que foi junto à costa de Samatra, mas o local diverge: nos baixios de Aru ou em Pasai? Brás Albuquerque e João Barros mencionam o primeiro, o governador faz referência explícita a este último. É que entre os dois sultanatos medeiam uns 300 km, pelo que a indefinição contribui em muito para adensar o mistério sobre o naufrágio e, evidentemente, sobre o local exacto do tesouro. É, pois, o tesouro que interessa. É interessante confrontar a imagem das riquezas fabulosas com a documentação da época. Esse cotejo faz percorrer um arrepio na espinha de qualquer entusiasta da caça ao tesouro. O desconhecimento da língua portuguesa e de algumas fontes, a tradução errada e a sobrecitação, que inevitavelmente leva ao exagero, fazem insuflar, de forma muito nítida, a dimensão da carga da Flor de la Mar. O cronista mais exuberante, como é seu hábito, é Gaspar Correia, a quem se deve a história dos leões de ouro (em número de quatro) e a descrição de vários objectos preciosos, tudo avaliado, segundo o mesmo, em um conto de ouro, ou seja, um milhão de cruzados. Brás Albuquerque fala em castelos de madeira aparamentados, diversos objectos forrados de ouro e outras preciosidades, mas a perda que Afonso Albuquerque mais teria lamentado foi a dos leões, que pretendia colocar no seu mausoléu em Goa. Leões de ouro? Não, de ferro fundido, e de valor sobretudo simbólico, como conta João Barros: haviam sido oferecidos pelo imperador da China ao sultão de Malaca e Albuquerque levara-os porque eram a mais principal peça do seu triunfo da tomada daquela cidade. Fernão Lopes Castanheda, por último, é lacónico e pouco diz. Sobre as alegadas toneladas de ouro, nem uma palavra: como apareceram e constam em tudo o que é página da Internet, é um mistério que rivaliza com o do próprio naufrágio.
Há um outro pequeno mistério adjacente: o que terá sucedido ao que restou do infortúnio. O próprio Albuquerque, em carta ao monarca Manuel I, afirma, e os Comentários do seu filho atestam, que alguns objectos preciosos foram salvos, nomeadamente os presentes do rei do Sião: uma espada, uma coroa de ouro e um anel de rubi, enviados para Lisboa. Onde estarão? Na mesma carta o governador lamenta a perda de algumas peças mas, acima de tudo, da documentação respeitante à conquista de Malaca. Uma vez mais, nenhuma referência a quantidades imensas de ouro. O fabuloso tesouro da Flor de la Mar não passa, portanto, de um mito. Não deixa de ser um tesouro, cujo interesse histórico não pode ser minimizado, mas o seu valor será provavelmente muito inferior ao que é apregoado e difundido. Até aqui apenas falei da carga que naufragou em 1512; o que sobreviverá hoje, cinco séculos depois, é evidentemente uma outra história, pois uma boa parte, se não a quase totalidade, do tesouro afundado perdeu-se. Sou eu que o digo? Não, é Tomé Pires, que escreveu em Malaca pouco depois do naufrágio, quem afirma perentoriamente que o rei de Batak (na costa norte de Samatra) recolheu o nau Flor de Ia Mar que com a tormenta se perdeu avante da sua terra e dizem que recobrou muito quanto a água não podia danar do qual dizem que é muito rico». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? Existe um tesouro da Flor de la Mar?, Mitos de Ontem e de Hoje, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de ELivros/JDACT