quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Mariana. A Estrela de Napoleão. Juliette Benzoni. «… a porta da biblioteca, deixada entreaberta pelo mordomo, se abriu para dar passagem a um homenzinho vestido de preto, trazendo qualquer coisa nos braços. Creio, contudo que recebereis “isto” disse ele com uma voz doce»

Cortesia de wikipedia

1973. Um coração solitário
«Com a ponta da bengala, Ellis Selton remexeu as achas que ardiam mal. Imediatamente surgiu uma longa chama que lambeu a madeira, torceu-se como uma víbora fulgurante e elevou-se para as alturas negras da chaminé. Com um suspiro, encostou-se no seu cadeirão. Nessa noite, detestava o mundo inteiro e a si própria mais ainda, do que todo o universo. Era sempre assim quando o peso da solidão se tornava insuportável. Lá fora, rajadas de vento agreste faziam curvar as ramagens das velhas árvores do parque, rodopiavam à volta do castelo e sibilavam nas chaminés em longos gemidos. A tempestade fazia sair da terra todas as vozes profundas dos desaparecidos. Pareciam vir dos tempos remotos até essa senhora, que incarnava os Selton. Já não havia homens para receber a nobre herança, nem rapazes arrogantes e alegres de voz forte, para quem essa tarefa não seria pesada. Havia apenas Ellis com os seus trinta e oito anos e a sua perna defeituosa, Ellis a coxa, a quem nunca ninguém falara de amor. É certo que teria podido casar-se facilmente, mas aqueles que eram atraídos pela sua fortuna e o fausto do palácio dos Selton inspiravam-lhe demasiado desprezo, para que se tivesse resignado a unir a vida a qualquer deles. De recusa em recusa, tinha-se tornado nessa criatura solitária de vestido cinzento, encerrada no seu orgulho e nas suas recordações... O rugido do vento parou por um instante. Das profundidades do parque veio o som abafado de uma sineta. O grande cão que dormia, com o focinho sobre as patas, aos pés da senhora abriu um olho. O seu olhar encontrou o da dona e rosnou surdamente. Quieto! Murmurou Ellis, pousando a mão sobre a cabeça do animal. É certamente um criado que chega atrasado, ou um vizinho que vem visitar o velho Jim.
Quis retomar a meditação, continuando a afagar a cabeça sedosa do cão, mas este recusava-se a adormecer. Com o pescoço esticado, escutava, como se o instinto lhe fizesse seguir os passos dum visitante através do parque sacudido pela tempestade. A sua atitude acabou por intrigar a dona. Seria alguma visita? Quem poderia chegar àquela hora? A entrada silenciosa de Parry, o mordomo, alguns instantes mais tarde, veio trazer a resposta. Habitualmente a própria imagem da serena dignidade, o servidor parecia agora muito perturbado. Está ali um homem, milady, um viajante que insiste em ver milady. Quem é? Que quer ele? Pareces pouco à vontade, Parry. É que, trata-se dum visitante estranho, milady, é uma gente que nós recebemos pouco. Só porque ele insistiu muito, eu me decidi a incomodar e... Basta, Parry, basta! Gritou Ellis, batendo impacientemente com a bengala no chão. Se te perdes nessas considerações, nunca chegarei a saber do que se trata, e já que decidiste incomodar-me, quero saber porquê.
O mordomo estava de tal modo agitado, que antes de responder permitiu-se fazer uma careta horrível, e depois os seus lábios pronunciaram com todo o desprezo de que era capaz: É um francês, milady, um padre católico!... e traz um bebé! O quê?... Estarás doido Parry? Ellis tinha-se erguido. O seu rosto tinha-se tornado tão cinzento como o vestido e, sob as espessas sobrancelhas, os olhos azuis brilharam de indignação. Um padre? Com uma criança? É, sem dúvida, algum refugiado perseguido pela polícia e que procura esconder o fruto dum pecado! Um francês, ainda para mais!... Um desses miseráveis que massacram a nobreza e cortam a cabeça ao seu soberano! E achas que eu vou receber isso...? Como protestante convicta, Ellis Selton não gostava dos católicos e votava aos padres uma espécie de horror cheio de desconfiança. Mas, à medida que falava, a voz alimentada pela cólera, tinha abandonado os limites calmos exigidos pela educação para atingir um tom agudo. Ia ordenar a Parry para pôr fora o intruso, quando a porta da biblioteca, deixada entreaberta pelo mordomo, se abriu para dar passagem a um homenzinho vestido de preto, trazendo qualquer coisa nos braços. Creio, contudo que recebereis isto disse ele com uma voz doce. Não se recusa aquilo que Deus envia. O recém-chegado era delgado, quase franzino. A barba e a sujidade que lhe manchavam as faces, davam um aspecto inquietante ao seu rosto magro e de traços incertos. O nariz arrebitado era uma nota insólita e maliciosa, mas que visível miséria do seu possuidor, se tornava trágica. Todavia, grandes olhos cinzentos muito belos e muito luminosos, ao mesmo tempo cândidos e profundos, conferiam um certo encanto à sua fisionomia inteligente, retirando-lhe qualquer grau de fealdade ou de banalidade. Apesar da cólera, lady Selton notou também a delicadeza das suas mãos e a pequenês dos pés, sinais infalíveis de alta estirpe, que contudo foram insuficientes para acalmar a indignação que sentia. O seu rosto pálido tornou-se muito vermelho. Portanto disse trocista é Deus quem vos envia? Parabéns, não vos falta ousadia. Parry, chama gente e põe lá fora este enviado do Senhor... e o bastardo que esconde consigo. Esperava ver a aflição do desconhecido, mas nada se passou. Sem recuar um passo, o homem contentou-se em abanar a cabeça, enquanto o seu belo olhar sincero se fixava na velha senhora colérica». In Juliette Benzoni, Mariana. A Estrela de Napoleão, tradução de Margarida Morais, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1972.

Cortesia de LCEditora/JDACT