sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Falo-lhe como falaria comigo mesmo se estivesse só; ela responde-me numa linguagem heróica de sua invenção. Enterrámos debaixo da lareira os anéis que Cohen tinha comprado para Melissa…»

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«(…) Além da velha enrugada que vem todos os dias da aldeia, trotando na sua mula, para fazer os arranjos domésticos, mais ninguém nos faz companhia. A criança leva a vida feliz e plena de uma flor transplantada. Ainda não lhe dei um nome, mas claro que a baptizei de Justine. Que outro nome lhe conviria? Quanto a mim, não me sinto feliz nem infeliz; estou suspenso como um cabelo ou uma pena, na amálgama nebulosa dos meus pensamentos. Falei da inutilidade da Arte mas esqueci-me de reconhecer as consolações que ela proporciona. O alívio que deriva do género de trabalho que produzo com o cérebro e o coração reside nisto: só no silêncio activo do pintor ou do escritor é que a realidade pode ser reelaborada e revelada no seu aspecto verdadeiramente significativo. As nossas acções quotidianas nada mais são do que os ouropéis que velam o vestido de ouro, a essência da forma. É na sua arte que o artista encontra, pela imaginação, um feliz compromisso com tudo quanto o feriu na vida quotidiana, e não para escapar ao seu destino, como faz o homem vulgar, mas para realizá-lo da forma mais adequada e completa que lhe for possível. Senão, porque nos havíamos de ferir uns aos outros? Não, a paz que eu procuro e que talvez venha a encontrar jamais me será dada, nem pelos olhos de Melissa, onde a temperatura brilhava, nem pelas pupilas ardentes e negras de Justine. Tomámos, todos nós, caminhos diferentes; mas aqui, no grande primeiro desastre da minha idade madura, sinto que a recordação delas enriquece e aprofunda, para além de todos os limites, os confins da minha arte e da minha vida. Realizo-as de novo em pensamento; é somente aqui, nesta mesa de pinho, colocada debaixo da sombra de uma oliveira e sobranceira ao mar, que eu posso fazê-las reviver em toda a merecida pujança. Assim, o sabor deste escrito ficará devendo alguma coisa aos seus modelos vivos, ao seu hálito, à sua pele, à sua voz, que se virão mesclar na frágil trama da memória humana. Quero ressuscita-las de tal modo que a dor se transmude em arte… Talvez seja inútil tentar uma tal empresa, mas, de qualquer maneira, não posso deixar de fazê-lo... Hoje, eu e a criança acabámos de construir a lareira da casa, falando tranquilamente enquanto trabalhávamos. Falo-lhe como falaria comigo mesmo se estivesse só; ela responde-me numa linguagem heróica de sua invenção. Enterrámos debaixo da lareira os anéis que Cohen tinha comprado para Melissa, de acordo com os usos da ilha. É uma forma de assegurar boa sorte aos habitantes da casa.
Na época em que encontrei Justine, eu era quase um homem feliz. A repentina intimidade com Melissa abrira-me uma porta, e essa intimidade não era menos maravilhosa pelo facto de ser inesperada e totalmente imerecida. Como todos os egoístas, eu não tolerava viver só; na verdade, o meu último ano de celibato tinha-me enervado, a minha incapacidade para o governo doméstico, a minha inaptidão para tratar de roupas, comida e dinheiro haviam concorrido para me reduzir ao desespero. Estava farto dos meus aposentos infestados de carochas, tendo por companhia um criado berbere, Hamid, o Zarolho. Melissa tinha derrubado as minhas frágeis defesas, não pelas qualidades que geralmente se atribuem às amantes, encanto, beleza excepcional, inteligência, mas em virtude daquilo a que chamo a sua caridade, no sentido grego da palavra. Costumava vê-la passar, muitas vezes, recordo-me, pálida, puxando para o magro, vestindo um modesto casaco de pele de foca e levando o seu cãozito pela trela, no meio das ruas invernosas. As suas mãos de tuberculosa, marcadas pelas veias azuis, etc. Os traços curvos e ousados das suas sobrancelhas davam aos bonitos olhos um ar simultaneamente cândido e atrevido. Via-a durante meses, mas a sua beleza taciturna não me excitava. Cruzava-me com ela todos os dias quando ia ter com Baltasar ao Café Al Aktar, onde o digno homem me iniciava. Nunca pensei em que um dia me viria a tomar seu amante. Sabia que ela tinha sido modelo no Atelier, profissão pouco invejável, e que era agora dançarina; mais, sabia que era amante de um velho peleiro, um vulgar e grosseiro negociante da cidade. Anoto estes pormenores simplesmente para registar um aspecto da minha vida para sempre afundado. Melissa! Melissa!» In Lawrence Durrell, Justine (Quarteto de Alexandria), Editora Ulisseia, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-568-496-2.

Cortesia de Ulisseia/JDACT