terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

História e Identidade Nacional. Sérgio Matos. «A par de outras temáticas como a Cruzada, os Descobrimentos e a expansão ultramarina, a decadência e o atraso relativamente a outras nações europeias, a definição do herói nacional ou as relações com Castela, o problema da independência de Portugal…»

Cortesia de wikipedia

A formação de Portugal na historiografia contemporânea
«No Portugal contemporâneo, a reflexão sobre a identidade nacional não se aprofundou como noutras nações europeias. Mas nunca deixou de estar presente na historiografia e na literatura e desenvolveu-se em múltiplas direcções após a queda do Império, em 1974-75. Diversos autores têm sublinhado a função social da história na formação da consciência nacional. Entre as elites intelectuais, os historiadores ocupam um lugar destacado na fixação de uma memória social, uma memória escrita, não raro erudita, acessível a uma pequena parcela da comunidade em que se inserem. Essa memória da nação teve as suas limitações, durante muito tempo permaneceu manuscrita, quando não oral; frequentemente esqueceu as diversidades étnicas e culturais bem como as assimetrias regionais, para olhar o território nacional como um todo indiferenciado. E até ao século XIX, deixou-se entrosar por diversos mitos. Mas não exprimem esses mitos, também eles, um determinado sentido de identidade? Seja como for, a memória da nação contribuiu para legitimar a independência do Estado português e a sua permanência histórica, bem como para forjar a coesão nacional. O caso português revela particularidades em relação a outros Estados-nação europeus que importa considerar: escasso peso das minorias étnicas, religiosas e linguísticas no todo nacional, de um modo geral nele integradas sem problemas; escassez de revoltas e rebeliões regionais e locais. Em tal contexto de relativa homogeneidade, de períodos de relativa estabilidade política e social (1851-1868; 1871-1890; 1932-1958) e de difusão de ideários nacionalistas, não surpreende que a história tenha sobretudo vincado um sentido da unidade nacional. Em diversos momentos estiveram em jogo desafios internos e externos, que podiam pôr em causa a existência do Estado independente: o défice das finanças públicas; o desafio iberista, tão vivo nos decénios de 1850-70 ou logo após a instauração da Iª  República em 1910, e a questão colonial, a ameaça que outras potências europeias com maiores recursos significavam em África. Nestas circunstâncias, compreende-se que um pequeno Estado europeu periférico e marginal como o português tenha, em diversos momentos, incentivado os estudos históricos e a publicação de fontes relevantes para o conhecimento do seu passado. E que a historiografia portuguesa tenha sido frequentemente instrumentalizada pelos nacionalismos e pelas ideologias difundidas pelo Estado ou por correntes políticas organizadas. A par de outras temáticas como a Cruzada, os Descobrimentos e a expansão ultramarina, a decadência e o atraso relativamente a outras nações europeias, a definição do herói nacional ou as relações com Castela, o problema da independência de Portugal e a sua permanência histórica constituíram um dos temas-chave da historiografia portuguesa, sobretudo a partir da revolução liberal de meados do século XIX. Tornou-se, de resto, numa das referências fundamentais na legitimação histórica do Estado português. O tema da formação de Portugal foi tratado em múltiplas perspectivas, tendo em conta, não raro, a questão das origens étnicas dos Portugueses, a autonomização do Estado no século XII, o território, a construção da nação e a sua continuidade no tempo. A frequente indiferenciação entre os conceitos de pátria, Estado e nação, que se observa na historiografia oitocentista (com raras excepções como as de Herculano e Oliveira Martins), contribuiu para a mescla daquelas questões que hoje são consideradas de um modo distinto.

Das teses providencialistas à teoria política de Herculano
Desde os finais do século XVIII, o racionalismo iluminista e a afirmação de uma historiografia de exigência documental e científica, sobretudo ligada à Academia Real das Ciências, alimentaram uma corrente crítica em relação às fábulas acerca das origens de Portugal: Túbal (neto de Noé, suposto fundador de Setúbal e do Reino de Portugal) e a sua descendência mítica, o milagre de Ourique e as alegadas Cortes de Lamego. A crença no progresso, a confiança na razão e o sentido crítico perante a teologia contribuía para minar a credibilidade dessas tradições tão difundidas mas, na verdade, nunca fundamentadas em evidências históricas. A instauração do regime liberal pela força das armas, depois legitimado por eleições e pela adopção dos textos constitucionais, e as novas exigências culturais de um Estado-nação em construção, que intentava formar cidadãos instruídos e não já súbditos fiéis ao monarca absoluto, tornavam arcaicos alguns desses mitos das origens (Túbal e o milagre de Ourique). Mas até meados de Oitocentos, era ainda muito comum a teoria providencialista acerca da batalha de Ourique, como momento-chave na formação do Estado português: para além dos legitimistas, partidários do Antigo Regime político, o poeta António Feliciano Castilho ainda a difundia. Outros autores esqueciam a tradição do milagre de Ourique mas continuavam a ver na batalha o facto decisivo na fundação da monarquia (caso de Coelho Rocha ou de Ferdinand Denis). Esta sobrevalorização do acontecimento, baseada, por vezes na teoria contratualista da origem popular do poder real, associava-se também à sobrevalorização do papel histórico de Afonso Henriques, herói fundador por excelência. Fundamentava-se assim a separação do Estado, quando não da Nação (frequentemente confundida com o Estado), no princípio dinástico. Mas num tempo de céleres transformações sociais e extraordinárias conquistas científicas como foi o século XIX, depressa esta tese se tornou insuficiente para explicar a complexa realidade dos Estados-nação». In Sérgio Campos Matos, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, História e Identidade Nacional, A formação de Portugal na historiografia contemporânea, Lusotopie, IV Jornadas, Porto, 2002.

Cortesia de Lusotopie/JDACT