segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Escutar a Literatura. Vieira Carvalho. «Gesto e som eram, para Rousseau, o dicionário da simples natureza, um tipo de comunicação dir-se-ia analógica, que teria precedido o processo evolucionário de invenção da palavra, da atribuição arbitrária de correspondências entre sons»


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Universos Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«Parto de uma reflexão critica sobre as infraestruturas da comunicação musical, relacionando-as com a investigação recente acerca das origens da comunicação humana. Na minha perspectiva, a comunicação musical, ora pode subsumir-se ou incorporar-se em sistemas de comunicação mais abrangentes, com autorreferencialidade e autorregulação específicas, neste caso, a música apresenta-se-nos apenas como um elemento ou um segmento entre outros que regem o sistema (por exemplo, o da liturgia ou outros rituais), ora pode constituir-se ela própria, enquanto tal, como sistema autorreferencial e autorregulado, e já não subordinado ou subalterno relativamente a outros sistemas de comunicação. Esta última variante surge gradualmente na cultura europeia desde a invenção da notação e da composição e culmina com uma mudança de paradigma na estrutura e na função da comunicação musical, processo que ocorre em meados do século XVIII em conexão estrutural com o desenvolvimento da economia de mercado e da esfera pública burguesa. Fazer música e ouvir música não perdem, desse modo, o seu carácter de acção ou comunicação sociais, nem deixam de se relacionar com sistemas de comunicação extramusicais. O que acontece é a emergência de um novo sistema autorreferencial, o musical, no qual o processo da significação ou produção de sentido se torna crescentemente autorregulado. Como qualquer sistema autorreferencial, a música assim dita autónoma, ao desenvolver a sua autorregulação específica, traduz no seu próprio código os inputs que recebe de outros sistemas autónomos de comunicação em que as sociedades mais complexas se diferenciam funcionalmente. Ou seja: a produção de sentido ou a significação musicais deixam de ser ditadas heteronomamente, por códigos de outros sistemas sociocomunicativos, como, por exemplo, o da religião ou o da esfera pública representativa da sociedade da corte.
Particularmente relevantes desde a constituição da música como sistema autorreferencial são as suas interacções com a esfera da educação, esfera em que a música passa a desempenhar um papel tanto ou mais importante do que as outras artes, a filosofia ou a ciência. A música autónoma abre-se a todos os aspectos da experiência social e humana, que passam a ser potencialmente objecto da música e duma cultura da escuta, isto é, podem ser traduzidos em termos musicais tal como o podem ser em termos filosóficos, científicos, políticos, religiosos, etc.. A música coloca-se no mesmo plano destas outras modalidades de comunicar, agir, exprimir, conhecer, com as quais pode, aliás, manter um diálogo mais ou menos profundo ou intenso (o leque de conexões estruturais entre sistemas ou subsistemas em que a sociedade se organiza é muito amplo e variado). Partilhar experiência humana e social através da música em si corresponde a uma nova função, e não a uma ausência desta. Contudo, o desenvolvimento histórico da economia de mercado, que contribuiu decisivamente para a constituição da música como sistema de comunicação autónomo, parece estar a levar, cada vez mais, nos nossos dias, dialecticamente, à liquidação deste.

As origens da comunicação humana
Que há de comum entre o canto gregoriano na missa, a música vocal e/ou instrumental numa corte do antigo regime, as encomendações das almas no ritual fúnebre duma comunidade rural, as cantigas de romaria numa festa popular, um canto de trabalho, uma serenata cantada à namorada com acompanhamento de guitarra, uma tarantela dançada até à exaustão? Os exemplos seriam inumeráveis, quer recuando na história, quer olhando à nossa volta para a grande variedade da experiência musical, para situações em que aquilo a que chamamos música (cantar ou tanger instrumentos, muitas vezes marchando ou dançando) surge como parte integrante de um todo holístico, do qual aquela não é propriamente destrinçável. Desde os tempos mais remotos, segundo os vestígios arqueológicos, parece não ter havido comunidades humanas que não tenham explorado a comunicação através do som, utilizando para o efeito não só a voz, mas também instrumentos para o efeito fabricados. Muitas especulações tem havido quanto ao papel da comunicação sonora na antropogénese. Rousseau é um dos filósofos que dão prioridade à expressão sonora, ao lado da gestual, na comunicação humana. Gesto e som eram, para Rousseau, o dicionário da simples natureza, um tipo de comunicação dir-se-ia analógica, que teria precedido o processo evolucionário de invenção da palavra, da atribuição arbitrária (ou digital) de correspondências entre sons vocais e objectos por estes designados, isto é, anterior à emergência da linguagem articulada, com a sua gramática, a sua morfologia e a sua sintaxe». In Mário Vieira Carvalho, Escutar a Literatura, Universos Sonoros da Escrita, Edições Colibri, Universidade Nova de Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-689-427-6.

Cortesia EColibri/JDACT