quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Escutar a Literatura. Vieira Carvalho. «Este é o ponto que, segundo Tomasello, marca a diferença entre os grandes símios e os humanos: os símios ‘apontam’, mas não ‘cooperam’ no gesto de apontar; os humanos ‘apontam e cooperam’ indissociavelmente»

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Universos Sonoros da Escrita. Música e dialéctica da escuta
«(…) Dir-se-ia que a hipótese de Rousseau, que em todo o caso defende a maior proximidade à natureza da linguagem gestual, é em parte confirmada na obra de Michel Tomasello, origins of Human Communication, publicada em 2008, onde o autor sintetiza as conclusões a que tem chegado ao longo de anos de observação e experimentação com grandes símios, confrontando-as com a investigação em curso sobre a comunicação com recém-nascidos ou crianças com poucos meses de idade. Segundo as investigações de Tomasello, é no gesto, no gesto de apontar, no gesto de mostrar, que reside o fundamento originário da comunicação humana. Tomasello opõe-se, pois, àqueles que vêem antecedentes da comunicação falada nas vocalizações dos símios ou que, como Georg Knepler (1982),abordam a antropogénese como um processo ao longo do qual um único sistema de comunicação acústica se subdividiu em dois: fala e música. Tomasello conclui das suas observações que as vocalizações dos grandes símios são de natureza filogenética e se mantêm inalteradas, mesmo quando eles são submetidos a um contacto intensivo com os humanos, ao passo que os gestos são do domínio da ontogénese, susceptíveis de aprendizagem cultural. E essa aprendizagem que está, por sua vez, inscrita evolucionariamente na infraestrutura psicológica oculta, altamente complexa, da intencionalidade partilhada, exclusiva da espécie humana, no âmbito da qual os humanos usam os seus gestos para construir um modelo cooperativo de comunicação. Este é o ponto que, segundo Tomasello, marca a diferença entre os grandes símios e os humanos: os símios apontam, mas não cooperam no gesto de apontar; os humanos apontam e cooperam indissociavelmente.
O fundacional na comunicação humana não está, pois, segundo Tomasello, no código ou nas convenções, mas sim noutras formas em que se manifesta a intencionalidade partilhada e o propósito cooperativo: nos gestos naturais de apontar e mimar. Os gestos humanos emergiram evolucionariamente a partir dos gestos dos símios e abriram caminho à completa convencionalização das linguagens humanas. Do ponto de vista psicológico-funcional, Tomasello indica dois tipos básicos de comunicação baseados no gesto de apontar e/ou mimar:
  • Dirigir a atenção do receptor espacialmente para algo no meio-ambiente imediatamente percepcionado (gesto deítico, usado pelas crianças desde a mais tenra idade); 
  • Dirigir a imaginação do receptor para algo não presente no meio-ambiente imediatamente percepcionado, através da simulação comportamental de uma acção, relação ou objecto (isto é, por via icónica ou da pantomima): induz-se o receptor a imaginar um referente ausente do campo da percepção ou acções que não estão a ocorrer nesse momento.
Enquanto os grandes símios solicitam coisas usando sinais ritualizados, compreendem intenções e percepções, raciocinam na prática sobre elas, os humanos somam a essas competências mais duas componentes: novos motivos de ajuda e partilha; nova aptidão para imitar acções (incluindo a aptidão para reverter o papel, role reversal, dando origem a gestos icónicos e convenções comunicativas». In Mário Vieira Carvalho, Escutar a Literatura, Universos Sonoros da Escrita, Edições Colibri, Universidade Nova de Lisboa, CESEM, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-689-427-6.

Cortesia EColibri/JDACT