quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Contos Júlio Cortázar. André Bueno. «Ahora estas noticias / esta collage de recuerdos / Igual de lo que cuentan/ son la obra anónima:la lucha / de um puñado de pájaros/ contra La Gran Costumbre. / Manos livianas las trazaron / con la tiza que invienta la poesia en la calle / com el color que asalta los grises anfiteatros»

Cortesia de wikipedia

«(…) A seu modo, Libro de Manuel ensaia a necessidade dessa aproximação entre o espírito libertário, lúdico, erótico e alegre, e os processos revolucionários. Não era, sem dúvida, uma aposta pequena. Mas fica claro que para o escritor argentino se tratava de uma aposta fundamental: apoiar as lutas de libertação, sobretudo na América Latina, sem renunciar à liberdade e à imaginação criadora, a pretexto de pragmatismo ou necessidades objectivas ditando a forma e o sentido da arte. Desse ângulo, Cortázar precisava acertar as contas com a pesada herança do stalinismo e do chamado realismo socialista. Sem dúvida uma herança pesada e autoritária, que rompeu de vez as produtivas aproximações entre vanguarda estética e vanguarda política. Fiquem como exemplos, salientes, as tentativas dos surrealistas se aproximarem do movimento comunista e a vanguarda soviética apoiando a Revolução em seu primeiro período. Cabendo lembrar, e frisar, que ambas as aproximações entre estética e política foram cortadas, de modo violento, pela ascensão do próprio stalinismo, que encerrou de vez a conversa. Na forma nada subtil da censura, do exílio ou prisão dos artistas. Tendo como marco, triste de lembrar, o suicídio de Vladimir Maiakovski no final da década de 1920. É certo que Cortázar, assim como muitos intelectuais e artistas, tanto na Europa como na América Latina, viram na Revolução cubana a esperança de um outro modelo, um contraponto ao stalinismo, na forma de um socialismo democrático, que respeitasse e apoiasse a liberdade no campo da cultura e da arte. Um divisor de águas nessa esperança acontece ainda na década de 1960, com o julgamento público do poeta Heberto Padilla.
Para muitos que apoiavam a Revolução cubana, ou ao menos eram simpatizantes, pareceu muito incómoda a semelhança do julgamento do poeta com os Processo de Moscovo na década de 1930. Como era de se esperar, as simpatias mais superficiais se desfizeram, e os apoios mais fundados e sérios precisaram, de facto, lidar com um problema nada fácil. Cortázar não trata do assunto, mas também não era um problema nada fácil de lidar a perseguição aos homossexuais em Cuba, muitas vezes jogados em presídios comuns, como criminosos. As memórias do escritor Reinaldo Arenas, que morreu de SIDA no exílio, dão uma notícia amarga dessa perseguição infame. Não ajuda muito saber que no presente, já velho, Fidel Castro tenha feito uma autocrítica da perseguição aos homossexuais em Cuba. No que diz respeito à justiça social e a liberdade, Cortázar foi sempre claro: o seu apoio à Revolução, fraterno e leal, jamais levaria a um enquadramento da sua imaginação crítica e criativa. E assim, de facto, aconteceu. O escritor argentino nunca colocou sua literatura a serviço de, nem reduziu o alcance do que escrevia ao horizonte estreito e instrumental das disputas imediatas no campo das lutas e dos partidos políticos. Em resumo, quis sempre criar pontes e passagens, manter vivo o espaço que relaciona estética e política. Sabendo que a Revolução nunca é um ameno piquenique ou convescote intelectual, mas acreditando que liberdade e justiça social precisam andar juntas.
Já foi notado, e me parece correcto, que Cortázar, em Libro de Manuel, leva as indagações de Rayuela, de tipo existencial e libertário, para o contexto histórico e social do começo da década de 1970. Para tratar de uma situação extrema, a ditadura militar argentina e a resistência armada ao regime- apenas uns poucos anos depois das revoltas de 1968, das quais participou com entusiasmo e alegria. Na Paris que escolhera para viver. É desse período um longo poema, uma espécie de colagem, intitulada Notícias del mês de Mayo, publicado em Ultimo round, no ano de 1969.(...) Poema-colagem em que se lê o momento histórico, brevíssimo, em que a utopia ocupou as ruas: Ahora estas noticias / esta collage de recuerdos / Igual de lo que cuentan/ son la obra anónima:la lucha / de um puñado de pájaros/ contra La Gran Costumbre. / Manos livianas las trazaron / con la tiza que invienta la poesia en la calle / com el color que asalta los grises anfiteatros. / Aqui prosigue la tarea / de escribir en los muros de la Tierra: / El sueno es realidad. ( Cortázar, 1969)
O contraponto não poderia ser mais forte, e difícil. Logo depois dessas imagens do Maio de 1968, da poesia na rua, do sonho parecendo realidade, da imaginação ocupando o lugar seco do poder e do costume mais conformista e arraigado, Cortázar precisava tratar de um estado de excepção, com todo seu cortejo de massacres. Do lado de lá, em Paris e na Europa, as esperanças de 1968 foram derrotadas, e as forças conservadoras voltaram a ocupar seu lugar, sem o recurso ao estado de excepção aberto e declarado. Do lado de cá, na América Latina, já começara, e continuaria ao longo da década de 1970, um ciclo pesado de golpes e ditaduras. É com certa melancolia que se nota a extensão do recuo, em tão breve espaço de tempo. Não poderia ser maior a distância que separava a imaginação e o poder». In André Bueno, Alguns contos de Cortázar. Literatura e autoritarismo, Espaço urbano e Experiências de desolação e violência, revista nº 19, 2012, ISSN 1679-849X.

Cortesia de RLAutoritarismo/JDACT