segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Contos e Lendas. Luís Augusto Rebelo Silva (1822-1871). «Interpretar fielmente a natureza, expressar os grandes rasgos, de que se compõe a fisionomia de uma época, e não desvairar muito na análise do coração humano, decifrando por ele o mistério da existência…»

Cortesia de wikipedia

A Pena de Tálio. Romance histórico
«Mais uma novela sai a tentar a fortuna. Que sorte a espera em caminhos tão perigosos? Como outras mais dignas de acolhimento, recebida pela indiferença, irá jazer no silêncio, ou ditosa, sem prendas, descansará nos braços dessa hospitalidade benévola, que em uma hora paga meses e anos de vigílias? Deus o sabe! São estas as criações do aceso imaginar, de que falavam os trovadores, e por mais que se queira disfarçar, o coração do autor, verdadeiro coração de pai, é inseparável delas, seguindo-as ansioso pela beira ao precipício, e acompanhando-as de cuidados até alcançarem o suspirado termo da jornada. Será orgulho só, e cobiça de glória? Não! É que as filhas da inteligência também são filhas queridas, e levantando-se para entrar no mundo, levam-nos consigo a alma e o amor! Nasceram de nós, e vimo-las balbuciar e crescer, e nas longas noites, em que o pensamento percorre as ruínas do passado, e os espaços infinitos, que a imaginação povoa, conversaram com o nosso espírito, e fizeram seu enlevo. De que modo brotam, e quem dá o ser a estes entes e ideais que a chama do engenho torna mais duráveis muitas vezes do que a própria realidade? Um raio de luz, um sorriso da fantasia, um acaso basta! Entre mil confusas sombras, que se agitam, a mente escolhe, e infunde-se em algumas. Então o quadro surge sem podermos dizer como; a tela anima-se pouco a pouco, e as figuras, já com as cores da vida, começam a existir, umas para não morrerem como as de Romeu, de Hamlet, e de Beppo, outras para brilharem um só momento, e logo se apagarem no tropel das outras que vêm chegando.
A forma o que faz depois é pintar ou cinzelar seguindo a visão interior; mas a imagem está dentro da alma; só ela a vê e a sente, e nem tinta, nem palavras a revelam como nos apareceu, com metade da viveza com que nós a conhecemos. Este romance nasceu assim, e do mesmo modo nasceram e hão de nascer outros. A leitura de alguns capítulos do segundo volume da História de Portugal do meu amigo A. Herculano suscitou o assunto. Disposta a imaginação, um dia acordou de repente aquilo que um escritor alemão denomina o nosso sexto sentido, e boa ou má, feliz ou deplorável, estava traçada como havia de ficar, e como hoje se oferece, porque a reflexão e a lima podem polir as grossuras e os defeitos superficiais, mas na essência não tocam, sob pena de sair um monstro, ou talvez pior, uma estátua regelada. Depois de feito o livro era fácil ligá-lo a remontadas cogitações, e administrar-lhe o baptismo filosófico; mas tendo a desgraça, ou a ventura, de acreditar pouco na missão política da arte, deixei as teorias sociais e os problemas grandiosos no lugar que lhes pertence. Sempre entendi que se invadiam assim, mas talando-as, duas províncias independentes; e que a preconizada conquista de uma pela outra seria vitória efémera, e pouco digna de louvor se em verdade é lícito dizer-se que seja vitória!
Interpretar fielmente a natureza, expressar os grandes rasgos, de que se compõe a fisionomia de uma época, e não desvairar muito na análise do coração humano, decifrando por ele o mistério da existência, pareceu-me sempre não ser a menor dificuldade do género; e como raros a têm atravessado incólumes, acho que os Cooper, os Walter Scott, e tantos imaginadores da mesma escola, ocupam de direito o posto, que o triunfo lhes granjeou. Se eles, que foram os mestres, temeram passar além, e se os seus monumentos nem por isso deixam de ser vistos de toda a parte, enquanto desabam em ruínas, dias depois, as construções ambiciosas dos inovadores, creio que não merecerá censura o ater-se qualquer tão obscuro como eu aos bons modelos, e de longe, na mesma distância, a que se reputa deles, fazer por agradar sem se atrever a mais. De Cervantes a Walter Scott e a Goethe, desde o imortal romance do Quixote até à soberba epopeia em prosa de Ivanhoe, e à sombria e esplêndida manifestação de Fausto, a forma tem adiantado muito. Não sei se resta ainda que inovar, ou se a reforma deverá parar por aí, por maior prudência. É delicada e espinhosa a questão! Entretanto não duvido acrescentar que a verdadeira originalidade reside para mim na ideia, na propriedade com que se retrata, na expressão e na cor dos costumes, que se avivam». In Luís Augusto Rebelo Silva (1822-1871), Contos e Lendas, publicado originalmente em 1873, Projecto Livro Livre, 582, 2014.

Cortesia de PLLivre/JDACT