sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Contos e Fantasias. Maria Amália Carvalho. «… com umas cintilações azuladas como as do aço fino? Se as suas mãos esguias e brancas se lhe afiguravam duas tenazes que podiam apertá-lo, apertá-lo até o torcerem todo, até o esfacelarem e fazerem dele, do seu pequeno corpo tão fraquinho»

wikipedia e jdact

Uma história verdadeira
«Ele tinha uma fisionomia incaracterística, apagada e tristíssima. Não se podia saber a idade que tinha, nem mesmo se tinha idade. Tanto podia ter trinta ou quarenta como setenta anos. Curvado pela idade ou pelos desgostos? Encanecido porque os anos tinham corrido sobre a sua cabeça, ou porque lhe tinham pesado duplamente sobre os ombros débeis? Quem o podia dizer? Era uma organização acanhada e raquítica, podia mesmo chamar-se incompleta. Para ele com certeza que a adolescência não tivera as suas madrugadas azuis tão gorjeadas e tão festivas, nem a virilidade tivera a fanfarra estridente dos seus clarins, a florescência escarlate e voluptuosa. Ele tinha sempre vivido debaixo de uma estranha pressão dolorosa. Dependera de todos, primeiro porque era fraco e inerme, depois porque fora pobre, dependente, sem aquela áspera dignidade que os atritos da vida tornam mais rude e que é a armadura moral que salvaguardara o homem nos duros combates sociais. Nasceu numa casa opulenta que lhe não pertencia, cresceu no meio de um luxo de que os seus pais eram parasitas voluntários e de que ele era…, um parasita inconsciente. Começara por ter medo de tudo e de todos; um medo que não raciocinava, que não sabia, que não indagava mesmo a sua própria origem. Nasceu assustadiço, como certos animais silvestres, e toda a vida conservou a mesma expressão inquieta e medrosa da lebre perseguida. Em primeiro lugar tinha medo do seu pai; um homem alto, espadaúdo, pletórico, de voz grossa e modos brutais, que comia como um abade, que bebia como um lansquenete, que praguejava como um carreiro, e que se vingava nos poucos seres que tinha debaixo do seu domínio, das complacências servis que era obrigado a mostrar aos que o mantinham naquela farta ociosidade de comensal que só goza e não paga. Depois tinha medo da sua tia; a dona da casa, a senhora, a suserana perante a qual todos se curvavam submissos. E no entanto ela era bonita, delgada, flexível, muito branca… A figura ideal para um pintor inglês.
Mas que culpa tinha ele, se os olhos dessa graciosa e delicada senhora lhe pareciam frios e metálicos, com umas cintilações azuladas como as do aço fino? Se as suas mãos esguias e brancas se lhe afiguravam duas tenazes que podiam apertá-lo, apertá-lo até o torcerem todo, até o esfacelarem e fazerem dele, do seu pequeno corpo tão fraquinho, uma grotesca massa informe, que o mundo inteiro pisasse, onde o mundo inteiro cuspisse! Seria alucinação daquele cérebro enfermo e condenado aos pensamentos doentios? Quem o sabe dizer? O caso é que o sentia, e que nunca pudera esquivar-se a essa preocupação intensa e dilacerante! Um destes dois seres que dominaram de estranho terror a sua infância, maltratavam-no nas explosões brutais do seu temperamento de touro bravo. O outro, a senhora, muito altiva, muito fria, muito desdenhosa, nem sequer lhe falava. Olhava-o ás vezes como se olha para um animal repugnante, para um sapo, ou para uma carocha, e passava adiante, imperturbável e olímpica. Havia, porém, um outro ser, dos que mais em contacto estavam com ele, que não o maltratava, nem o desprezava com a glacial frieza do seu desdém. E contudo era desse que ele tinha ainda mais medo. Era o seu tio; uma figura original, uma fisionomia de titã que por um engano qualquer da natureza não pôde conseguir passar de ser anão.
O seu tio!... Como esta individualidade extraordinariamente acentuada, como este rosto irónico, irregular, convulsionado, dominou para sempre o destino obscuro da infeliz criança que eu conheci já em velho! O seu tio não o perseguia nem lhe manifestava uma repugnância muda, pelo contrário. Chamava-o continuamente para o pé de si, ensinava-lhe, quando estava só, palavras, esgares, visagens grotescas que lhe fazia repetir à frente de gente, num coro de gargalhadas ásperas e hostis como gumes de espadas! Vestia-o de um modo. Desusado e extravagante, vestia-o de marujo, de escocês, com as suas pequenas pernas magras, trigueiras, ossudas, numa nudez friorenta que lhe doía, e o fazia tiritar; vestia-o de tirolês, o que lhe dava um aspeto cómico, que arrebentava com riso a criadagem.  Ás vezes nos seus dias de melhor humor saía com ele, que tinha apenas sete anos de idade, de casaca, chapéu-alto, e berloques na cadeia do relógio. Havia tempos em que não podia passar sem a sua companhia; a criança era a única distracção do anão... As carícias desse homem singular, de olhar faiscante, de cabeladura revolta e eléctrica, de voz sonora e rica de inflexões estranhas, doíam, porém, ao pequeno muito mais do que os desprezos ou os maus tratos dos outros.
Ao pé destes sentia-se perseguido, ao pé daquele sentia-se humilhado. Um dia o marquês, o tio do pequeno Tadeu era marquês, achou cómico mandar introduzir a criança no cofre que havia junto ao fogão do gabinete de trabalho, destinado a guardar a lenha ou o carvão que se consumia. De minuto em minuto abria-se a tampa e saía a cara vermelha e congestionada do pequeno, uma cara de animal assustado, o que divertia extraordinariamente as visitas. Outra vez, numa ceia alegre em que havia rios de champanhe e risos cristalinos de mulheres, Tadeu com um facto de meia preta a cobri-lo todo e dois castiçais nas pequenas mãos, servia de centro agachado numa posição grotesca no meio da mesa. Saiu dali com uma febre que o teve um mês entre a morte e a vida, delirante, sem conhecer ninguém, com a mãe debulhada em lágrimas à cabeceira. Mas Tadeu não gostava da sua mãe. Era uma criatura tão débil como ele, pálida como uma defunta, inerme, estúpida e sem vontade. As lobas defendem os seus filhos, a mãe de Tadeu não o sabia defender! Entregava-o às cóleras descompostas do pai; aos desprezos gélidos da tia; aos caprichos monstruosamente cómicos do marquês; às apupadas brutais das aias e dos lacaios; aos risos das visitas; ao pasmo desprezador das outras crianças, que iam àquela casa opulenta e ruidosa acompanhadas pelos pais, vestidas de veludo, com plumas nos seus lindos chapéus, o ar grave de meninos bem-criados, e que não tinham licença de brincar com aquele pequeno histrião, feio, ridículo, doente, com gesto de epilético, com fatos de palhaço e com soluços de mártir». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), Luso Livros, Nova Forma de Ler, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLIvros/JDACT