terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

As Obras do Diabinho da Mão Furada. António José Silva. «Determinava fazer-te má hospedagem, mas, vendo-te tão animoso e justificado, revoguei a minha intenção, que até os diabos, pelo que temos de atrevidos, respeitamos os sujeitos valerosos e não somos tão maus como nos pintam»

jdact e wikipedia

«(…) A boa educação e a cortesia parece que até ao diabo acalma. Tais palavras ainda não eram acabadas, quando a casa estava outra vez telhada e o Diabinho da Mão Furada deu-se a mostrar na presença do nosso soldado Peralta. Era uma figura de pequena estatura, mas de disformes feições: os narizes rombos e asquerosos, os olhos encovados em profundas grutas, a boca grande, com dentes de javali, e os pés de bode; e perante o sobressalto de Peralta, disse ele estas palavras: Não sou, oh animoso soldado, nenhum desses príncipes infernais que dissestes. Sou comissário geral, sim, para tentador e provocador de maldades. Depois que, por soberbas e ingratas acções, o nosso inefável criador nos despenhou das celestiais alturas, alguns foram sepultados nos abismos infernais enquanto outros de nós ficámos no ar e na superfície da terra, tendo para nosso castigo o poder para movermos as tempestades e os terremotos, mas só quando aquele que nos precipitou o permite para castigar o mundo. Desses sou eu um dos mais perversos e endiabrado de todos. Fui eu o que inventei o tabaco para que os homens perdessem o sentido e regalo do olfato e andassem sempre enojados dele, e bem se vê que foi invetivo esse tal vício, pois não sofrem do mal que tomam e quando espirram e lhes dizem: Dominus tecum, respondem para evitá-lo: Senhores, é tabaco! (O tabaco na altura não era apenas fumado; tabaco em pó, chamado de rapé era usado para cheirar e induzir o espirro; a moda começou porque se acreditava que o espirro era bom para a saúde e curava as enxaquecas; na verdade era o efeito da nicotina que provocava tal efeito; cheirar rapé tinha um grande revés, viciava e fazia com que os mais apanhados no vício andassem sempre a espirrar). Assim têm por delícia estar sempre a meter o pó pelos narizes e bebê-lo em fumo pela boca, à imitação do Inferno.
Inventei também os sapatos com o salto de um palmo de altura e a sua forquilha na ponta, em sinal do que merece quem os usa. Inventei os rebuços (capas que ocultam o rosto) de meio olho para licenciar às mulheres liberdades. E os monhos, as anáguas, os guarda-infantes e outras sarandagens e decotados provocadores de lascívias. Não falo em capoinas, saranbeques, chacoinas, sarabandas e seguidilhas desonestas, que isso são coisas novas para mim. Uns chamam-me Diabinho da Mão Furada e outros Fradinho, por termos alguns de nós as mãos tão rotas de liberdades, que em muitas casas onde andamos fazemos ferver o mel, crescer o azeite, aumentarem-se os bens, lograrem-se felicidades, e sobretudo, quando nos merecem com boa companhia que nos fazem, descobrimos tesouros escondidos aos donos das casas em que andamos. A estas casas me inclinei, para a minha habitação, pelos infelizes donos que tiveram e execráveis malefícios que nelas executaram. Daqui tenho ordem de Lúcifer para acudir a todos os mágicos e bruxas que connosco têm pacto, para lhe dar conhecimento de que por meio da minha indústria querem saber.
Determinava fazer-te má hospedagem, mas, vendo-te tão animoso e justificado, revoguei a minha intenção, que até os diabos, pelo que temos de atrevidos, respeitamos os sujeitos valerosos e não somos tão maus como nos pintam. E já me apraz em te ter por hóspede esta noite, para a passar a conversar contigo, por seres homem de inestimável valor, a quem a minha presença não atemoriza, como a alguns coitadinhos que só do meu nome se assombram e fogem. Por isso não partirás daqui sem ires regalado e eu te fazer grandes bens. Agradeço a Sua Diabrura, senhor Diabinho da Mão Furada, a hospedagem desta noite, respondeu o Soldado, por a não poder escusar, mas os favores que me promete não me são necessários, porque, como Sua Demonência costuma pôr o mel pelos beiços de semelhantes promessas, com que engana aos parvos, para depois exigir pagamento delas com mais dano dos que deu crédito, não quero eu prato de ouro em que hei-de escarrar sangue; e sangue espiritual, ademais, para risco da minha salvação. Ora digo, replicou o Diabinho, que és esperto, pois me conheces tão bem. É verdade que a profissão da minha natureza é a que supões: de enganar com promessas de bens, para deles tirar males de quem os recebe, sem considerar os juros com que lhos concedo, porque os ignorantes pensam que no receber não há engano e que todo o mato é orégãos. Mas tu de mim podes estar seguro que de ti não quero nada mais que fazer-te bem. Outro cão que roa esse osso, disse o Soldado, que a mim me não enganam palavras que a elas, e às penas, o vento leva.
Não sejas tão desconfiado da afeição que te tomei, respondeu o Diabinho, pois não te vejo como seres ingrato. Chegaste aqui pobre, e quero que vás rico. Considera, para não rejeitares o que te ofereço, como diz o castelhano hágase el milagro, i hágalo el diablo (faça-se o milagre e faça-o o diabo). Ao que respondeu o Soldado:  Se Vossa Diabrura quiser comigo usar essa gentileza, sem esperar de mim que quebre em nada a obrigação de fiel católico, no será mi dicha tanta, quanto será mi plazer (não será tanta a minha felicidade, como será o meu prazer). Ainda que, replicou o Diabinho, não se pescam trutas com calças enxutas, e que nunca o muito custou pouco, já te disse que não queria que te custasse nada os favores que te fizesse, porque me pago deles no gosto que tenho de falar contigo. A isto ia responder o Soldado, mas impediu-lhe a visão de quatro vultos femininos que, com notável estrondo, entraram de repente pela janela, com grandes alaridos, os cabelos soltos, arrepiados e negros, as caras disformes, as carnes queimadas, e nas grosseiras e torpes mãos umas candeinhas acesas. Os tais vultos, ajoelhando-se em frente do Diabinho da Mão Furada, disseram assim: A ti, oh poderoso comissário do Príncipe das Trevas, reverenciamos e rendemos graças como tuas fidedignas súbditas. Vimos relatar os malefícios que temos feito em virtude do pacto que contigo celebramos, para que o julgues por bom acerto e não nos faltes quando te invocarmos». In António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN 978-989-817-496-3.

Cortesia de LLivros/JDACT