quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

As Mãos e os Frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça. Ana Ribeiro Oliveira. «… “sinais que foi semeando” (considerando que, em poesia, as palavras não são nomes, são sinais, Eugénio de Andrade é um semeador de sinais) ao longo da sua obra e que nos permitirão ilustrar o percurso da sua escrita»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Falar da poesia de Eugénio de Andrade implica, de certa forma, falar de música. Da música das suas palavras e da que a prolonga, nascida, neste caso, das mãos de Lopes Graça, que um feliz acaso me fez encontrar e que originou a vontade de me deter nestas duas formas de arte, para tentar descobrir como os sons musicais e a palavra se cruzam e se complementam no universo destes artistas». In Ana Cristina R. O.

«Haverá, certamente, alguma forte razão para que em parte alguma encontremos culturas cujo canto seja completamente desprovido de palavras, desprovido de poesia. De facto, apesar de serem artes autónomas e com características muito próprias e distintivas, a literatura e a música sempre conviveram e se influenciaram mutuamente ao longo da sua história, ainda que feita de encontros e desencontros, mantendo uma intensa relação criativa e inspirando-se reciprocamente. Orpheu, o músico e o poeta que, com o seu canto, amansava as feras, animava as pedras, fazia mover as árvores e pacificava os homens, é o símbolo mítico desta profunda união entre as duas artes…, diz-nos Aguiar Silva. Protegidas pelas musas da antiga Grécia, música e poesia eram indissociáveis. A música acompanhava a poesia lírica, que deverá esta designação à lira, instrumento usualmente utilizado, a par do aulos e da cítara. Se bem que hoje não se possa considerar que a música e literatura se influenciem de forma directa como já aconteceu no passado, em que a evolução de uma testemunhava de perto a da outra, ou que a literatura seja a principal influenciadora da música, e muito menos a música a fonte mais demandada pelos homens de letras, é difícil não concordar com João Freitas Branco quando afirma que não é preciso ser profeta para intuir a perduração deste intercâmbio de musas. Há genes comuns a literatura e música.
Para Lopes Graça, torna-se igualmente difícil estabelecer rigoroso e nítido ponto de separação entre a palavra e o canto; se é certo que aquela pode, sob o império da paixão, tender para a música, (…) também o canto, ao invés, quando se quer fazer mais persuasivo e, sobretudo, quando expõe, canta ou narra, como no recitativo, tende para as condições da voz falada. Tentaremos perceber esta ligação entre poesia e música, analisando a linguagem poética de Eugénio de Andrade e a linguagem musical de Lopes Graça, ligação que estes homens que se destacaram nas artes portuguesas cultivaram de forma modelar. É usual, por parte da crítica, a associação da escrita de Eugénio de Andrade à arte dos sons. De resto, o próprio escritor, frequentemente, a referiu nos seus escritos. A musicalidade das suas palavras, a sonoridade e ritmo dos seus versos, as diferentes tonalidades melódicas que sugerem e a brevidade das suas composições serão alguns dos aspectos que aproximam a sua à arte dos sons. Também Lopes Graça encontrou na literatura inspiração frequente para a sua criação musical, onde é visível o enorme interesse que a produção literária portuguesa sempre lhe suscitou. De facto, percorrendo a vasta obra musical que nos legou, deparamo-nos com um extenso leque de escritores que mereceram a sua atenção, entre os quais se encontram os mais representativos da nossa literatura, desde os seus primórdios à actualidade, e que ele tentou incansavelmente difundir e ilustrar com os sons musicais.
Da obra destes dois artistas, seleccionámos As Mãos e os Frutos, primeiro livro do poeta e o ciclo de músicas para voz e piano do compositor, com o intuito, não só de fazer uma leitura das composições, mas também de tentar demonstrar que duas formas de arte podem completar-se, evidenciando essa união tão natural e que se manteve inalterável durante tanto tempo. A poesia de Eugénio de Andrade será objecto de uma abordagem genérica e abrangente, dando especial ênfase a palavras que o poeta reutiliza ao longo da sua criação poética e intimamente ligadas ao seu primeiro livro, sinais que foi semeando (considerando que, em poesia, as palavras não são nomes, são sinais, Eugénio de Andrade é um semeador de sinais) ao longo da sua obra e que nos permitirão ilustrar o percurso da sua escrita. Assim, as mãos e os frutos, que nele surgem com um destaque especial, que lhes é dado até pelo próprio título do livro, constituirão a fonte de onde decorrem outras imagens e palavras que povoam o seu universo poético.
Encontramos, na sua poesia, algumas repetições obsessivas de temas, palavras, expressões ou imagens que atestam as suas preferências solares, mas também algumas que podemos adjectivar de nocturnas, que se vão transformando para dar lugar sucessivamente a novas palavras e imagens. De resto, é o próprio poeta o primeiro a reconhecer a sua atracção pelas metamorfoses que surgem frequentemente na sua poesia: À melodia exasperada e expectante, cálida e apaziguadora de Eros, a esse canto que da fundura do ser remonta às vertentes da morte, deve a minha poesia quase sempre o impulso inicial. Mas só esse impulso, pois é então que outra paixão começa: a das metamorfoses. Muitas palavras poderiam ser apontadas, já que as metamorfoses que se vão apresentando nos seus versos são múltiplas e algumas até surpreendentes. Consideraremos, no entanto, as palavras que estão mais intimamente ligadas ao seu primeiro livro, ou o que foi por ele assim considerado, durante muito tempo». In Ana Ribeiro Oliveira, As Mãos e os Frutos de Eugénio de Andrade e de Lopes-Graça, Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2010.

Cortesia da UCoimbra/JDACT