sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A Última Quimera. Ana Miranda. «Ele me examina com estranheza, tentando reconhecer-me. Recua a cabeça, aperta os olhos e responde, ainda interrogativo, ao meu cumprimento, tocando de leve na cartola. Já vai se afastando de mim quando o interpelo novamente, dizendo algo a respeito de Théophile Gautier»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Talvez ninguém em nossa literatura tenha personificado com tamanha força a figura do outsider, do bizarro, do homem com uma sensibilidade fora do normal, como Augusto dos Anjos (1884-1914). Incompreendido no seu tempo e quase miserável (como herança à família deixou pouco mais do que os exemplares encalhados de seu único livro), o poeta paraibano foi um dos raros escritores a transpor o abismo entre as expressões literárias do final do século e a explosão do modernismo. A sua obra permanece viva, não apenas nos manuais de literatura mas nos poemas que se incorporaram à memória popular. Particularmente notável, neste livro, é a evocação do Rio de Janeiro, onde o poeta atravessou anos cruciais de seu desenvolvimento. Ali, naquela época de transição, quando os primeiros automóveis disputavam as ruas com os tílburis puxados a cavalo, ainda se faziam sentir os últimos suspiros de uma belle époque sensual e boémia. Por esse cenário tumultuado, onde ousados projectos de reurbanização da Capital conviviam com disputas políticas e literárias que magnetizavam toda a população, desfilam personagens reais e fictícios, surpreendidos nos momentos mais significativos. E é nesse contexto inusitado que emerge, como contraponto ao drama de Augusto, a figura ímpar de Olavo Bilac. Tratado com sensibilidade e precisão, ele cresce à medida que o livro avança. Escrita com todo o fausto da nossa língua, esta obra revela-se, no conjunto, uma das mais belas criações da autora e assinala um daqueles momentos sublimes em que o romance histórico alcança o nível da mais inventiva ficção.

A plenitude da existência
Na madrugada da morte de Augusto dos Anjos caminho pela rua, pensativo, quando avisto Olavo Bilac saindo de uma confeitaria, de fraque e calça xadrez, com bigodes encerados de pontas para cima e pincené de ouro se equilibrando nas abas do nariz. Embora esteja perto dos cinquenta anos, o poeta do amor carnal ainda tem aquele olhar que tanto agrada às burguesas e às prostitutas ou, para citar ele mesmo, às lavadeiras e às condessas. Sinto pudor de dirigir-me a este homem erecto, famoso, rutilante, recém-chegado de Paris, no seu tom de poeta supremo, com quem um simples passeio na rua do Ouvidor equivale a uma consagração literária. Não quero ser confundido com um oportunista, ou com um chaleirista. Mas sendo este um momento de profunda tristeza, e a tristeza é uma espécie de anestésico, tomo coragem, jogo fora o cigarro, paro em frente de Bilac e lhe digo um quase inaudível bom-dia, porém percebendo logo o erro que cometi me corrijo: Boa noite.
Ele me examina com estranheza, tentando reconhecer-me. Recua a cabeça, aperta os olhos e responde, ainda interrogativo, ao meu cumprimento, tocando de leve na cartola. Já vai se afastando de mim quando o interpelo novamente, dizendo algo a respeito de Théophile Gautier, a quem Bilac muito admira. Ele pára e se volta, sorrindo. Falamos alguns minutos sobre o escritor francês, desde tolices como minha referência a suas calças verde-água e seu colete cereja, vaiados em plena rua e que se tornaram uma polémica mundial, até coisas importantes, que Bilac introduz na conversa, como comentários a respeito da arte pela arte, dos poetas românticos no cenáculo do beco de Doyenné. Passamos a falar a respeito de Banville e logo, por uma associação perfeita, sobre Baudelaire, de quem uma vez disseram que um odor fétido de alcova porca emanava das suas poesias. Chegamos, portanto, onde eu desejava.
Falar sobre Baudelaire tem o mesmo gosto que falar sobre Augusto dos Anjos. Relato a Olavo Bilac a recente morte do poeta paraibano. Ele me pede que repita o nome. Augusto dos Anjos, repito. Bilac diz que lamenta muito mas, por um lapso, não o conhece, tem andado mais em Paris que no Rio de Janeiro. Com o rosto sinceramente compungido pede informações sobre Augusto, talvez pensando na própria morte, seus últimos poemas não são mais voluptuosos como no Sarça de Fogo, porém melancólicos e reflexivos; e, como cronista, não é mais tão irónico e fescenino. Digo que Augusto foi um grande poeta filosofante, cientificista, sim, mas com um abismo dentro de sua alma que leva o leitor de seus poemas às mais profundas esferas da triste humanidade. Bilac reflecte alguns instantes, segurando o queixo com o indicador e o polegar. Tuberculose?, pergunta, e digo que não sei ainda a causa da morte de Augusto, mas que embora tenha morrido aos trinta anos decerto nunca foi tísico, era todavia asmático; logo saberei o motivo da sua morte, pois pretendo partir no primeiro trem para a cidade mineira de Leopoldina, onde ele morreu, a fim de assistir aos funerais. Bilac abana a cabeça negativamente, num lamento; pede que eu declame um verso qualquer do poeta morto, em seguida se cala, à espera do poema.
Sei de cor todos os versos de Augusto, posso recitar qualquer um deles de frente para trás e de trás para a frente. Mas nunca conseguirei imitar os modos de Augusto quando declamava, transfigurado, sem fazer quase nenhum gesto, usando apenas a voz, numa frieza e paixão simultâneas, as sílabas escândidas com uma sonoridade metálica, os olhos penetrantes, os lábios tensos. Tiro o chapéu, aperto-o contra o peito e, com uma voz trêmula, anuncio o título do poema: Versos íntimos. Raspo a garganta. E inicio a declamação: Vês?! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão, esta pantera foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa ainda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija! Ao terminar estou suspenso, frio, quase tonto e abro os olhos. O senhor Bilac fita-me, imóvel, os lábios entreabertos, os olhos um pouco arregalados, ainda segurando o queixo. Pois bem, ele diz. Eh... Tosse, cobrindo a boca com a mão. Depois cala-se, visivelmente perturbado. Olha para os lados. Num impulso súbito deseja livrar-se de mim. Pois se quem morreu é o poeta que escreveu esses versos, ele diz, então não se perdeu grande coisa». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT