quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A Ruiva e Outras Histórias. Fialho de Almeida. «Que é lá isso, patego? O seu olho envidraçado não podia fitar; os fios de baba desciam-lhe, lentos, aos cantos da boca. Olá!, fez o cabouqueiro, a maré encheu. E sacudia-o. Mais bêbedo é você, grande cavalgadura!»

jdact e wikipedia

Contos. A Ruiva
«A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao cemitério dos Prazeres, e era frequentada pela gente do sítio, especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam os seus trabalhos e entram na cidade, em ruído. Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que fosse como a fachada opulenta da gélida cidade de cadáveres; na planura que medeia entre o cemitério e as terras, o terreno via-se revolto; os carros de mão jaziam esquecidos; os montes de pedras miúdas e de argamassas antigas tornavam penoso o trânsito. Na lama constante do caminho, eram profundos os sulcos que as seges de enterro deixavam até à porta do cemitério, escancarada sempre, como a goela de um plesiossauro faminto. Em anoitecendo, tudo aquilo era de uma contemplação lúgubre e misteriosa, em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na treva, no fundo dos ciprestes e dos túmulos, diante de um santuário deserto, onde o Cristo, do alto, olhava vagamente o guarda-vento. Começavam então a chegar à tasca os guardas encanecidos no mester de receber enterros, graves nos seus uniformes fatídicos, os coveiros angulosos e vesgos lançando-se de si um fétido deletério; e cada um, dando boas-noites à tia Laureana, ia sentar-se à banca, no seu lugar, chupando pontas de cigarro e pedindo decilitros. Todas as noites a casa se enchia e o aspecto era sempre o mesmo.
Ao fundo, encostada ao balcão forrado de zinco, a tia Laureana, mulher de grandes seios e arrecadas, que tinha a especialidade dos pastéis de bacalhau, e pernas másculas saindo de grosseiras saias de baetilha; ao canto o cego de chapeirão derrubado, atitude fria, faminta, dolorida e apagada, a rebeca nos joelhos, a manta de riscas ao ombro, a eterna noite nas feições. O grupo dos trolhas, junto da porta, discutia o preço das couves e o número de ventres perfurados com facas de ponta, durante a semana. Zé Claudino tinha a palavra; a sua autoridade indiscutível de orador popular fazia-lhe cair dos lábios, como um rosário de sons, as palavras graves, indecorosas, chulas e poéticas, em misto turbulento e inteligente. Bêbedos extraordinários falam de tudo e descrevem parábolas no solo, com a sombra dos seus corpos embrutecidos. Dois ou três embirram com a sombra. Mete-te comigo, resmungam; cai nessa, minha tirana! A velhaca, comentam, tem agora a mania de ir adiante de mim. Esta manhã era atrás. Mas não me larga! Bêbeda! Era o que me faltava! Súcia de marmanjos! E, insistentes, aos ziguezagues: Persegue-me, anda, persegue-me, que levas dois butes. Lá isso, ouve-se outro dizer na rua, lá isso não digo eu... Que ele há um Deus que nos governa: é boa! Eu entrava, cumprimentando os velhos conhecimentos. Ditosos olhos, estudantinho!, dizia um. Ó seu casaca!, fazia outro.
Seja bem aparecido e pague-me dois dedos de marujo. Um velho fressureiro, com o olho esgazeado de sicário experiente, tocando-me o braço com a sua mão ensanguentada, ia aconselhando baixo: Prove-me do branco, doutor; prove-me do branco; que é uma reinação! Com um pastelinho, não lhe conto nada... Aqueles eram os meus amigos, perigosos amigos contraídos na intimidade do vício e no surdo deboche das tascas. Sentava-me. A Laureana vinha, sorrindo, servir-me; e o seu olho pardo, sequioso, acariciava a brancura do meu pescoço, apetecia os meus cabelos de um louro-claro, tons insípidos, sob as abas do chapéu esburacado. O seu hálito empestava a dez passos, trazido nas asas do seu amor quente e brutal, de uma infâmia cheia de mercancia. Ouvindo-me pedir qualquer coisa, o olhar adoçava-se-lhe como o dessas gatas a quem coçamos o crânio; e eu sentia exalar-se dela um fartum de gorduras fundidas, que me perturbava. Nessa noite chegou o tio Farrusco. Era coveiro e o mais asqueroso, o da vala; aspecto repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces, as mãos aduncas e gastas, cheias de terra e de cabelos.
Sobre a testa, de uma polegada de largo, caíam grenhas fermentadas; as orelhas desapareciam-lhe sob a lã sebácea de um barrete cinzento; por um rasgão da camisa, furava uma moita de cabelos hirsutos, brancos como um pé de junco seco, nascido entre as pedras de um muro arruinado de azenha decrépita. Quase lhe ficavam pelas esquinas a que se encostava os farrapos em que embrulhava o corpo esquelético e lustroso, como de couro curtido. Um cabouqueiro tostado, perfil adunco de coruja, bateu-lhe no ombro: Tio Farrusco! O outro tentou aprumar a estatura lassa na moleza da embriaguez, e resmungou: Que é lá isso, patego? O seu olho envidraçado não podia fitar; os fios de baba desciam-lhe, lentos, aos cantos da boca. Olá!, fez o cabouqueiro, a maré encheu. E sacudia-o. Mais bêbedo é você, grande cavalgadura!» In Fialho de Almeida, A Ruiva e Outras Histórias, 1881, Contos, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ISBN 978-972-370-963-6.

Cortesia de LLivros/JDACT