terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira Costa. Rui Lopo. «… a filosofia, tal qual foi, tal qual é, seria incompreensível sem a contribuição de judeus, árabes e cristãos, sejam teólogos ou filósofos da Natureza. Assim também o pensamento dos gregos seria incompreensível sem o Oriente...»

Cortesia de wikipedia

«(…) Pois que o que sucedeu foi apenas o abrir de uma possibilidade, a exposição de uma virtualidade por realizar. Segundo Quadros, ao possibilitar a interpenetração fica aberta à filosofia a sua mais ampla compreensão: ofertámos à especulação filosófica a máxima latitude dos pensamentos ocidentais e orientais. Assim, mais que celebrar as navegações haveria que proceder à efectiva descoberta do que o Oriente realmente seja. No mesmo sentido, recordemos um muito digno de menção e reflexão heterónimo castelhano de Agostinho da Silva, José Maria Carriedo, apresentado ao leitor como um amigo que intervém no curioso diálogo entre heterónimos presente em Folhas Soltas de São Bento: homem que mora há quarenta anos no Japão, que come à japonesa, mora à japonesa, veste à japonesa, não me falou de outra coisa senão da Espanha e dos problemas da Espanha, aonde nunca voltou (...) como bom espanhol, Carriedo não teoriza sobre sua existência; limita-se, ou dilata-se, a vivê-la plenamente; as teorias ficam para os cartesianos; como cartesiano, proporia eu que se visse em Carriedo uma explosão daquele orientalismo que os observadores têm denunciado na evolução da cultura peninsular e uma afirmação de que o motivo religioso ainda é o mais forte na Ibéria. Pelos mesmos anos, também José Marinho irá reflectir sobre a pretensa oposição entre Ocidente e Oriente. Assim, dirá que a filosofia, tal qual foi, tal qual é, seria incompreensível sem a contribuição de judeus, árabes e cristãos, sejam teólogos ou filósofos da Natureza. Assim também o pensamento dos gregos seria incompreensível sem o Oriente mais próximo ou remoto. (...) Quanto à restrição heideggeriana do conceito de filosofia a cousa europeia, helénica, ou posterior à Hélade, não parece de aceitar em povos periféricos da Europa em relação com o amplo mundo. Aqui também se valoriza a interpenetração como característica funda da filosofia e seu programa de futuro.
A distância do chamado centro europeu é também aqui valorizada por implicar uma proximidade com o amplo mundo. Em atitude convergente, Dalila identifica na tradição cultural portuguesa uma predestinação teleológica ecuménica que seria visível principalmente na acção e obra dos poetas e pensadores da Renascença Portuguesa. Reflectindo, sobretudo, a partir do Cristianismo, estes autores teriam previsto, antecipado e proposto uma transformação histórica no sentido de um universalismo real por vir. Esta mutação futura consistiria num esforço comparável à aventura da Descoberta. Desta feita, porém, a questão já não se prenderia com uma expansão ou dilatação (de Fé e Império) do que se é, ou mesmo com uma simples apropriação do que se encontre (e que nos manteria numa horizontalidade dada) mas fundamentalmente com uma vertical outração: isto é, tratar-se-ia de acolher entre todas as tradições espirituais da humanidade aqueles elementos de plenificante sentido, isto é, os mais matriciais de futuro em fecundidade sempre nova e diferente; seria agora então o momento de actualizar aquilo que mais nos possa superar, operando uma mutação, que consiste na sobre-humanização ou divinização do homem, no ultrapassamento da condição mental ainda dominante. A isto a autora denomina como uma missão antropológica transcendente, uma destinação antropocósmica.
Assim, as tradições espirituais da humanidade serviriam de anúncio e programa de transformação emocional e mental, de metamorfose anímica e espiritual. A reflexão de Dalila marca um momento alto de toda a filosofia da Saudade do século XX pelo seu grande fôlego especulativo, densidade metafísica e consistência do esforço de síntese operado sobre as teorizações anteriores. Tal como vimos suceder com Leonardo em seu instigante contributo, também Dalila experimentou a necessidade de confrontar a teoria da saudade com aquilo a que chama Budismo, vendo-os contudo como contrapolares e considerando a Saudade como uma força de oposição à descontinuidade budista do eu. Provando a fecundidade do cotejo dos temas de cultura portuguesa com temas orientais e, nomeadamente, do Budismo com a Saudade (caminho esboçadamente aberto por Leonardo e retomado por Dalila), Paulo Borges, em nossos dias, leva a cabo uma nova e original teorização da saudade marcada justamente pela presença de temas e noções próprios da tradição budista». In Rui Lopo, A leitura do Budismo na obra de Dalila Pereira da Costa, Estudos, Universidade de Lisboa, Associação Agostinho da Silva, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI, 2007.

Cortesia da ULisboa/JDACT