quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A Celta. Joana D’Arc. Leon Denis. «Imaginai a curiosidade malsã de todos e, particularmente, dos soldados, no meio dos quais, tem de viver suportando constantemente as fadigas, as penosas cavalgadas, o peso esmagador de uma armadura de ferro…»

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«(…) Anatole France, nos seus dois volumes, obra de arte e de inteligência, não vai tão longe. Não tenta deixar de reconhecer-lhe as visões e as vozes. Aluno da École des Chartes, não ousa negar a evidência, perante a vasta documentação de que dispõe. A sua obra é uma reconstituição fiel da época. Pinta a fisionomia das cidades, das paisagens e dos homens do tempo com mão de mestre, com uma habilidade, uma finura de toque, que lembram Renan. Entretanto, a leitura dos seus escritos deixa-nos frios e desapontados. As opiniões que emite são às vezes falsas, por efeito do espírito de partido, e, coisa mais grave, sente-se, desfolhando-lhe as páginas, uma ironia subtil e penetrante, que já não é história. Na verdade, o juiz imparcial deve dar testemunho de que Joana, exaltada pelos católicos, é denegrida pelos livres pensadores, mais por espírito de contradição e de oposição aos primeiros do que por ódio. A heroína, disputada por uns e outros, torna-se assim uma espécie de joguete nas mãos dos partidos. Há excessos nas apreciações de ambos os lados e a verdade, como quase sempre, é equidistante dos extremos.
O ponto capital da questão é a existência de forças ocultas que os materialistas ignoram, de potências invisíveis, não sobrenaturais e miraculosas, como pretendem, mas pertencentes a domínios da natureza, que ainda não exploraram. Daí, a impossibilidade de compreenderem a obra de Joana e os meios pelos quais lhe foi possível realizá-la. Não souberam medir a enormidade dos obstáculos que se deparavam diante da heroína. Pobre menina de dezoito anos, filha de humildes camponeses, sem instrução, não sabendo o A, B, C, diz a crónica. Tem contra si a própria família, a opinião pública, toda a gente! Que teria feito sem a inspiração e sem a visão do Além, que a sustentavam? Imaginai essa camponesa na presença dos nobres do reino, das grandes damas e dos prelados. Na corte, nos acampamentos, por toda a parte, simples vilã, vinda do fundo dos campos, ignorante das coisas da guerra, com o seu sotaque defeituoso, cumpre-lhe enfrentar os preconceitos de hierarquia e de nascimento, o orgulho de casta; depois, mais tarde, os motejos, as brutalidades dos guerreiros, habituados a desprezar a mulher, não podendo admitir que uma donzela os comandasse e dirigisse. Juntai a isso a desconfiança dos homens da Igreja, que, nessa época, viam em tudo o que é anormal a intervenção do demónio; esses não lhe perdoaram actuar sem a permissão deles, fazendo jus à autoridade que se arrogavam, e aí estará, para ela, a causa principal da sua perda.
Imaginai a curiosidade malsã de todos e, particularmente, dos soldados, no meio dos quais, virgem sem mácula, tem de viver suportando constantemente as fadigas, as penosas cavalgadas, o peso esmagador de uma armadura de ferro, dormindo no chão, sob a tenda, pelas longas noites do acampamento, presa dos acabrunhadores cuidados e preocupações de tão árdua tarefa. Todavia, durante a sua curta carreira, vencerá todos os obstáculos e, de um povo dividido, fragmentado em mil facções, desmoralizado, extenuado pela fome, pela peste e por todas as misérias de uma guerra que dura há perto de cem anos, fará uma nação vitoriosa. Eis aí o que escritores de talento, mas cegos, flagelados por uma cegueira psíquica e moral, que é a pior das enfermidades intelectuais, procuram explicar por meios puramente materiais e terrenos. Pobres explicações, pobres argúcias claudicantes, que não resistem ao exame dos factos! Pobres almas míopes, almas de trevas, que as luzes do Além deslumbram e atordoam! É a elas que se aplica esta sentença de um pensador: o que sabem não passa de um nada e, com o que ignoram, se criaria o Universo!
Coisa deplorável: certos críticos da actualidade como que experimentam a necessidade de rebaixar, de diminuir, de anular com frenesim tudo que é grande, tudo que paira acima da sua incapacidade moral. Onde quer que brilhe um luzeiro, ou se acenda uma chama, havereis de vê-los a correr e a derramar um dilúvio de água sobre o foco luminoso. Ah!, como Joana, na ignorância das coisas humanas, mas com a sua profunda visão psíquica, lhes dá uma lição magnífica por estas palavras que dirigia aos examinadores de Poitiers e que tão bem se enquadram nos cépticos modernos, nos pretensiosos espíritos superiores do nosso tempo: Leio num livro em que há mais coisas do que nos vossosIn Léon Denis, Joana D’Arc, A Celta, A missão histórica da heroína, as suas visões e espiritualidade, tradução de Eduardo Amarante, projecto Apeiron, Zéfiro, 2010, ISBN 978-989-677-023-5.

Cortesia de Zéfiro/JDACT