terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Se Isto é um Homem. Tradução de Simonetta Neto. Primo Levi. «… com uma intuição quase profética, a realidade revelou-se-nos: chegámos ao fundo. Mais para baixo do que isto, não se pode ir: não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável»

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No Fundo
«(…) Andamos para a frente e para trás sem sentido, e falamos , cada um fala com todos os outros, o que provoca um grande barulho. A porta abre-se, entra um alemão, é o mesmo sargento de há pouco; fala brevemente, o intérprete traduz. O sargento diz que têm de se calar, pois isto não é uma escola tabínica. Vê-se que as palavras não são suas, as palavras maléficas torcem-lhe a boca ao sair, como se cuspisse algo de repugnante. Pedimos-lhe que pergunte do que é que estamos à espera, por quanto tempo ainda ficaremos aqui, pelas nossas mulheres, tudo: mas ele diz que não, que não quer perguntar. Este Flesch, que se adapta sem nenhuma vontade a traduzir em italiano frases alemãs cheias de gelo e se recusa a passar para alemão as nossas perguntas porque sabe que é inútil, é um judeu alemão à beira dos cinquenta, que tem na cara uma grande cicatriz de um ferimento que sofreu ao combater contra os italianos no Piave. É o homem fechado e taciturno, pelo qual experimento um respeito instintivo, porque sinto que começou a sofrer antes de nós. O alemão vai-se embora, e ficamos calados, embora com um pouco de vergonha por ficarmos calados. Ainda era noite, perguntávamos a nós próprios se jamais chegaria o dia. De novo a porta se abriu e entrou um tipo com a farda às riscas. Era diferente dos outros, mais velho, de óculos, um rosto mais civilizado, e muito menos robusto. Fala connosco e fala italiano.
Já estamos cansados de nos espantar parece que estamos a assistir a um drama louco, daqueles em que aparecem em cena as bruxas, o Espírito Santo e o Demónio. Fala mal italiano, com um forte sotaque estrangeiro. Fala demoradamente, é muito gentil, procura responder a todas as nossas perguntas. Encontramo-nos em Monowitz, próximo de Auschwitz, na Alta Silésia: uma região habitada promiscuamente por alemães e polacos. Este campo é um campo de trabalho, em alemão diz-se Arbeitslager; todos os prisioneiros (são cerca de dez mil) trabalham numa fábrica de borracha, que se chama Buna, e por isso também o campo se chama Buna. Iremos receber sapatos e roupa; não, os nossos, não: outros sapatos, outra roupa, como a dele. Agora estamos nus porque estamos à espera do duche e da desinfecção, que irão ocorrer logo após o despertar, porque não se entra no campo sem fazer a desinfecção.
Com certeza, teremos de trabalhar, todos aqui têm de trabalhar. Mas há trabalho e trabalho: ele, por exemplo, é médico, é um médico húngaro que estudou em Itália; é o dentista do Lager, Encontra-se num logo há quatro anos (não neste: a Buna só existe há um ano e meio), porém, podemos vê-lo, está bem, não está muito magro. Porque é que se encontra no Lager? É judeu como nós?, não, diz ele com simplicidade, eu sou um criminoso. Fazemos-lhe muitas perguntas; às vezes ri-se, responde a algumas, não responde a outras; vê-se bem que evita certas questões. Das mulheres não fala: diz que estão bem, que cedo voltaremos a vê-las, mas não diz como, nem onde. Mas conta-nos outras coisas, coisas estranhas e loucas, talvez também ele esteja a gozar connosco. Talvez esteja louco: no Lager, um homem enlouquece. Diz que todos os domingos há concertos e desafios de futebol. Diz que quem sabe pugilismo pode tornar-se cozinheiro. Diz que quem trabalha bem recebe como prémio senhas com as quais se pode comprar tabaco e sabão. Diz que a água de facto não é potável, mas que todos os dias é distribuído um sucedâneo de café, que geralmente ninguém bebe, porque a sopa é água da quanto basta para satisfazer a sede. Pedimos-lhe para nos dar algo que se beba, mas ele diz que não pode, que veio ter connosco às escondidas, contra a proibição dos SS, porque ainda não estamos desinfectados, e tem de se ir embora imediatamente; veio porque tem simpatia pelos italianos e porque, diz, tem um pouco de coração.
Perguntamos-lhe ainda se há outros italianos no campo, diz que há alguns, poucos, não sabe quantos, e de repente muda de conversa. Entretanto, tocou um sino e ele fugiu imediatamente, deixando-nos atónitos e desconcertados. Alguns sentem-se mais animados, eu não, eu continuo a pensar que também este dentista, este indivíduo incompreensível, quis divertir-se à nossa custa, e não quero acreditar numa palavra do que disse. Ao toque do sino, sentiu-se o campo escuro acordar. De repente, a água começou a brotar a ferver dos chuveiros, cinco minutos de felicidade; mas logo a seguir irrompem quatro tipos (talvez sejam os barbeiros) que nos impelem, molhados e fumegantes, com gritos e empurrões para a sala adjacente, que está gelada; aqui outras pessoas, gritando, deitam para cima de nós não sei que farrapos e põem-nos na mão um par de sapatões com sola de madeira; não temos tempo de perceber que já nos encontramos ao ar livre, na neve azul e gelada da madrugada e, descalços e nus, com toda a roupa na mão, temos de correr até outra barraca, a uma centena de metros de distância. Aqui, é-nos permitido vestir-nos.
Quando acabámos, cada um ficou no seu cantinho, e não ousámos levantar o olhar uns para os outros. Não há espelhos para nos vermos, mas o nosso aspecto está diante de nós, reflectido em cem rostos lívidos, em cem fantoches miseráveis e sórdidos. Estamos transformados nos fantasmas que entrevimos ontem à noite. Então, pela primeira vez nos apercebemos de que a nossa língua carece de palavras para exprimir esta ofensa, a destruição de um homem. Num ápice, com uma intuição quase profética, a realidade revelou-se-nos: chegámos ao fundo. Mais para baixo do que isto, não se pode ir: não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável. Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão e, se nos escutassem, não nos perceberiam. Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá--lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.

Em memória do Fernando José. Que estejas em paz.

Cortesia de Teorema/JDACT