sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Portugal é uma Ilha. António o seu Rei. Alexandre Borges. «Aquela mulher já não parecia louca, mas o general de uma tropa mitológica, um comandante com ligações especiais à natureza, líder de uma táctica de guerra baseada no mais eterno instinto de sobrevivência»

Cortesia de wikipedia e jdact

Dom António, prior do Crato
«Os primeiros soldados espanhóis haviam desembarcado, há cerca de uma hora, na pequena baía da Salga, próxima de Porto Judeu. Começavam a subir a encosta, penetrando já nos pastos desertos, onde deviam aguardar a concentração de um total de 1000 militares, divididos em l0 batalhões. Foi quando vislumbraram a figura de uma mulher, uma mulher que acenava com os braços, em cima de um muro feito de pedra sobre pedra. Era uma silhueta roliça, onde começavam agora a distinguir umas feições avermelhadas, ancas largas, que gritava estoicamente todos os impropérios que conhecia, dedicando-os a todo o povo espanhol. Incansável, incessante, rematava depois e repetia, com firmeza: Estamos por Dom António! Estamos por Dom António. Os militares acabados de desembarcar entreolharam-se e, depois, julgando-a louca, romperam numa gargalhada colectiva. Comentaram entre eles: a julgar por aquela amostra de sentinela local, a tomada da ilha seria ainda mais fácil do que tinham imaginado.
O que os espanhóis não viam era que, por detrás de Brianda Pereira, rente ao solo e encostados ao muro, fora do campo de visão dos soldados, estavam 32 terceirenses que preparavam a largada de uma manada de gado bravo sobre o invasor. Ao mesmo tempo, não longe dali, um pequeno exército formado por locais que nunca antes tinham pegado numa arma, marchava na direcção de Porto Judeu. Tratava-se de cumprir o juramento feito perante a cruz de Cristo, com a intercessão do padre Afonso Capela, pouco tempo antes, numa pequena igreja de Angra do Heroísmo. Prometeram, na ocasião, defender até à morte, dos espanhóis, a ilha Terceira. Como Brianda, gritaram que estavam por Dom António, prior do Crato, e ao lado do gado bravo que os companheiros soltariam ao longo da baía da Salga. Pouco tempo passado, do alto da elevação rochosa, já o capitão espanhol Pêro Valdez observava, atónito, pela primeira vez em muitos anos de intensos combates por mar e por terra, a investida do gado sobre os seus homens, apavorados. Uma mancha negra e ruidosa, levantando pó e medo por aquele descampado que terminava na rebentação das ondas. Por entre gritos de pânico e confusas tentativas de fuga, viu muitos dos seus soldados tombarem, desaparecerem entre dorsos e patas, demasiado assustados para ensaiarem qualquer ataque contra aquele exército de animais em fúria, que se lançavam contra eles sem hesitação, de corpo inteiro.
Varrido o campo de batalha, os 32 homens escondidos atrás do muro saltavam agora e reuniam o gado. Aos olhos do invasor, à medida que o pó se abatia e o contorno de Brianda Pereira voltava a ser visível, como estátua negra no exacto lugar onde a haviam percebido a primeira vez, tornava-se agora evidente o erro de análise. Aquela mulher já não parecia louca, mas o general de uma tropa mitológica, um comandante com ligações especiais à natureza, líder de uma táctica de guerra baseada no mais eterno instinto de sobrevivência. Ali, de cima do muro, o corpo de Brianda balançava agora, como que imitando o embalo dos animais. Àquele insólito teatro de guerra chegava agora o improvável exército de populares que partira de uma igreja de Angra, julgando-se abençoado pela graça divina e disposto a cumprir até ao fim a missão de que ele mesmo se havia incumbido, em honra do seu rei. Vinha dar o golpe de misericórdia. Ocupar-se daquelas sombras de soldados que o gado deixara por terra.
Pêro Valdez fitou a mulher. Não estava certo de que ela continuasse a gritar ou se era apenas ele mesmo que a ouvia ainda na sua cabeça: Estamos por Dom António! O capitão olhou uma última vez aquele cenário de desolação, o que restava de 1000 homens bem preparados e armados fugindo como podiam para os barcos, carregando mortos e feridos, implorando clemência a um adversário que não conhecia convenções de guerra. Valdez desceu por fim do morro de onde contemplara o massacre e apressou-se também ele. Lançou-se ao mar e nadou furiosamente para o bote que o levaria de regresso ao galeão. Já abordo, rosnou que se levantasse o ferro. Os que faltavam nadaram de modo ainda mais aflito. Agora, na calmaria absurda das águas, olhou a baía em panorâmica. Fixou um ponto negro que talvez fosse Brianda Pereira e amaldiçoou o nome que ela gritava e repetia, António. António». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia CdasLetras/JDACT