terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Poesia. Machado Assis. «É notável que toda a obra de fôlego, pelo qual um indivíduo se institui mestre na sua categoria, é, ao mesmo tempo, obra de emoção e de pensamento, contém tanto uma forma de arte como uma fórmula de filosofia»

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Menina e Moça
«Está naquela idade inquieta e duvidosa,
que não é dia claro e é já o alvorecer;
entreaberto botão, entrefechada rosa,
um pouco de menina e um pouco de mulher.

Às vezes recatada, outras estouvadinha,
casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
tem coisas de criança e modos de mocinha,
estuda o catecismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, e seio lhe palpita,
de cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
olha furtivamente o primo que sorri;
e se corre parece, à brisa enamorada,
abrir asas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
a cama da boneca ao pé do toucador;
quando sonha, repete, em santa companhia,
os livros do colégio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
e quando entra num baile, é já dama do tom;
compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
para ela é o estudo, exceptuando talvez
a lição de sintaxe em que combina o verbo
to love, mas sorrindo ao professor de inglês.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
parece acompanhar uma etérea visão;
quantas cruzando ao seio o delicado braço
comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! Se nesse momento alucinado, fores
cair-lhes aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
hás de vê-la zombar dos teus tristes amores,
rir da tua aventura e contá-la à mamã.

É que esta criatura, adorável, divina,
nem se pode explicar, nem se pode entender:
procura-se a mulher e encontra-se a menina,
quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!»
Poema de Machado de Assis, in ‘Falenas’


Quando Ela Fala
«Quando ela fala, parece
que a voz da brisa se cala;
talvez um anjo emudece
quando ela fala.

Meu coração dolorido
as suas mágoas exala,
e volta ao gozo perdido
quando ela fala.

Pudeste eu eternamente,
ao lado dela, escutá-la,
ouvir sua alma inocente
quando ela fala.

Minha alma, já semimorta,
conseguira ao céu alçá-la
porque o céu abre uma porta
quando ela fala».
Poema de Machado de Assis, in ‘Falenas’

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