quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O Segundo Livro de Visões de Cataldo Sículo. Helena C. Toipa. «… mas o excelso rei, senhor e pai das coisas, proibiu o meu regresso aos teus tectos, até que, vencido pelas tuas lágrimas, pela tua virtude e pela tua fé, me ordenou que viesse, abandonando o celestial assento…»

Cortesia de wikipedia

Uma introdução à sua leitura
«(…) E o sinal positivo da morte, refúgio e descanso perante uma vida inclemente e dura, manifesta-se, por exemplo, na utilização de certas palavras em sentido oposto ao habitual; assim, a morte é a vida, morrer é receber a luz: A queda do cavalo não foi para mim a morte, mas a vida. Assim o determinou o eterno Deus: a luz, não ma tirou, deu-ma (pertence ao ideário cristão, mas também ao de certas filosofias clássicas, como o platonismo e o pitagorismo, esta crença na verdadeira vida que se vive após a morte). Sendo a morte o início da verdadeira vida, não é coerente ou apropriado, pois, chorar continuamente o morto: porque derramas tu, minha querida mãe, lágrimas vãs? Porque sofres, se não existe causa para tanta dor? A crença na vida eterna em Deus, na verdadeira vida após a morte, na ressurreição: que coisa melhor, mais suave e mais santa pode, pois, ser desejada por um mortal, em piedosos votos, do que viver uma vida superior, para sempre infinita, e participar no bem eterno? Aqui afligem-nos constantemente tristezas prementes, trabalho permanente e dor contínua. É uma das características que marcam, neste texto, a forte presença dos ideais cristãos. Esta presença está, desde logo, expressa na configuração do texto, escrito sob a forma de Visão: a um ser vivo é mostrada, por alguém que já morreu fisicamente, um mártir, um santo, um homem bom, a felicidade em Deus (Deus que, pelos epítetos e antonomásias por que é nomeado, revela as características do Deus da Bíblia; ele é Deus passim, Deus aeternus, Deus ardens, regnator, rex excelsus rerum dominusque paterque, rex uerus regnator excelsi Olympi, summus genitor, immensum perpetuumque Deum, auetorem Deum, omnipotens, e Dominus. A Visão é um género literário medieval, de que existem alguns exemplos nos nossos relatos hagiológicos. Diz Clara Lucas: É de sempre o desejo humano de construir neste mundo de lágrimas um espaço de felicidade para o qual se encaminhe o homem justo, espécie de recompensa para todo aquele que souber encarar esta vida como antecâmara de uma outra vida melhor.
Afonso, que vivia nos céus, entre as estrelas (passim) e uma multidão de anjos e santos, desce à terra, por especial condescendência de Deus: mas o excelso rei, senhor e pai das coisas, proibiu o meu regresso aos teus tectos, até que, vencido pelas tuas lágrimas, pela tua virtude e pela tua fé, me ordenou que viesse, abandonando o celestial assento. Que se comovera com o sofrimento e com a virtude da rainha (uma referencia à sua piedade e religiosidade, que a tornaram digna de ser contemplada com a visão do filho), e revela-lhe o motivo de ser a vida humana tão cheia de sofrimento e incerteza: é que, para se alcançar a felicidade em Deus, isto é, o bem perpétuo e eterno, é preciso saber merecê-lo: e, como o Criador havia de dar a este filho um bem celestial, perfeito e perpétuo, assediu-o com mil sofrimentos e outros tantos perigos, vencidos os quais lhe daria as recompensas devidas. E lembra-lhe, então, a quantidade de perigos, sofrimentos e temores que afligem o homem: a presença obsidiante da morte, rodeando-o com as suas negras asas, que o atormenta mais que a morte em si, as doenças, os perigos súbitos, a pobreza ou o inesperado empobrecimento, a avareza, a adversidade e a infelicidade, a fragilidade da existência, que o mais insignificante verme pode aniquilar. E como é frágil a existência! Morre-se, infelizmente, muito facilmente afogado durante um naufrágio, enforcado ou trespassado por um gládio suicida, quando a adversidade é incomportável, fulminado por um raio, e ainda por acção de água gelada bebida em hora imprópria, de uma telhazita que ocasionalmente atingiu o alvo ou de uma grainha de uva que impertinentemente provocou a asfixia daquele que a saboreava (diz a tradição, veiculada por autores como Plínio, o Velho, ou Valério Máximo, que o poeta Anacreonte morreu desta forma: digo o mesmo de Anacronte que, ainda assim, tinha já ultrapassado o termo estabelecido para a vida humana. Como sugasse o sumo de uma uva passa, para alimentar as fracas forças que lhe restavam, uma grainha verde, que se alojou pertinazmente na sua garganta seca, levou-lhe a vida.
Plínio, o Velho, constatara também, na sua Historia Natural, a fragilidade da vida humana, dizendo: e mesmo hoje é ainda necessário menos (para aniquilar o homem); a mordedura de um minúsculo dente de serpente ou, como para o poeta Anacreonte, uma grainha de uva passa, ou ainda, como para Fábio, que foi senador e pretor, um simples pelo numa golada de leite, que lhe provocou a asfixia. Mas muitas outras causas há de morte: os animais, dos domésticos aos vermes mais insignificantes, provocam-na e o mesmo acontece com alguns vegetais. A fome, a peste, a guerra, as catástrofes naturais, tudo, enfim, reclama o seu quinhão. Até sentado se pode morrer, como aconteceu com Álvaro Portugal, apresentado como exemplo. Mas o homem merece sofrer tantas adversidades, pelos pecados que comete; resgatá-los-á não só após a morte, mas também, e principalmente, em vida, no decurso da qual é constantemente assediado por aquela: mas merecemos sofrer tão grandes adversidades por causa dos nossos pecados; todos nós somos, assim, castigados com merecido açoite; os homens não resgatam os seus delitos apenas depois da morte; uma inesperada punição atormenta os pecadores antes de morrer; (...);creio que o verdadeiro perigo não é a morte em si, mas a ameaça de morte, que se nos declara a qualquer hora». In Helena Costa Toipa, O Segundo Livro de Visões de Cataldo Sículo, Uma introdução à sua leitura, Universidade Católica, Centro de Viseu, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT