quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O Músico Cego. Vladimir Korolenko. «Para o miúdo cego, ela irrompia no quarto apenas com o seu apressado barulho. Ouvia como as correntes das águas primaveris fluíam, como se quisessem ultrapassar-se umas às outras, saltando nas pedras, enfiando-se dentro da terra amolecida…»

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«(…) Não tardou a conhecer na perfeição todas as salas pelos respectivos sons: diferenciava o andar dos familiares, o rangido da cadeira com o tio aleijado sentado nela, a fricção seca e rítmica da linha nas mãos da mãe, o tiquetaque monótono do relógio de parede. Às vezes, gatinhando ao longo da parede, escutava atentamente um barulhinho ligeiro, inaudível para os outros, levantava a mão e estendia-a para uma mosca que andava pelo papel da parede. O insecto assustado levantava voo e desaparecia e, na cara do cego, surgia uma expressão de doentia perplexidade. Era incapaz de se dar conta do misterioso desaparecimento da mosca. Contudo, posteriormente, nos mesmos casos, o seu rosto mantinha a expressão de uma atenção consciente: virava a cabeça na direcção em que a mosca estava a voar, o seu ouvido requintado apanhava no ar o fino ressoar das suas asas.
O mundo que brilhava, que se movia e que soava à sua volta penetrava na cabecinha do cego principalmente em forma de sons, e as suas percepções tomavam essas formas. Na sua cara fixava-se uma atenção especial para os sons: o maxilar esticava-se-lhe ligeiramente por cima do fino pescoço. O sobrolho começava a mexer-se, enquanto os olhos belos mas imóveis comunicavam ao rosto do cego uma expressão severa e, ao mesmo tempo, comovente.
O terceiro Inverno da sua vida estava a terminar. Na sua a neve já derretia, os riachos primaveris tilintavam e a saúde do menino, que passara o Inverno quase sempre adoentado, sem sair para o ar livre, começou a melhorar. Foram tiradas as vidraças complementares das janelas e a Primavera irrompeu no quarto com o dobro da força. O risonho sol primaveril batia nas janelas banhadas em luz, os ramos ainda nus das faias baloiçavam, ao longe negrejavam os campos com umas manchas de neve a derreter aqui e ali e, noutros sítios, com ervas jovens, por ora quase indistintas. Toda a gente respirava com mais liberdade e prazer a toda a gente a Primavera trazia forças e energia renovadas.
Para o miúdo cego, ela irrompia no quarto apenas com o seu apressado barulho. Ouvia como as correntes das águas primaveris fluíam, como se quisessem ultrapassar-se umas às outras, saltando nas pedras, enfiando-se dentro da terra amolecida; os ramos das faias cochichavam atrás das janelas, colidindo entre si e tilintando ao tocar ligeiramente nos vidros. O célere gotejar primaveril dos sincelos que pendiam do telhado, endurecidos pelo frio matinal e, agora, aquecidos pelo sol, tamborilava com milhares de toques timbrados. Estes sons caíam no quarto como pedrinhas brilhantes e sonoras, executando uma rápida e vibrante percussão. De vez em quando, através desses tinidos e barulhos, fluíam das infinitas alturas os chamamentos dos grous, silenciando-se pouco a pouco, como que derretidos lentamente no ar. Na cara do menino esta animação da natureza repercutia-se numa doentia perplexidade. Carregava tensamente o sobrolho, esticava o pescoço, escutava e depois, como que alarmado pela incompreensível azáfama dos sons, estendia de repente as mãos, procurando a mãe, e precipitava-se para ela, apertando-se contra o seu peito». In Vladimir Korolenko, O Músico Cego, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-30-8.

In Memoriam dos amigos dona M. do Nascimento e Teodoro. Sr D… deixe-me um espaço na garagem por causa do meu Volvo castanho…

Cortesia de Arbor Litterae/JDACT