sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O Complexo de Culpa do Ocidente. Pascal Bruckner. «… da ordem medieval nasce o Renascimento, do feudalismo a aspiração democrática, da opressão da Igreja o século das Luzes. … as conquistas ultramarinas suscitam o anticolonialismo, as revoluções do século XX o movimento antitotalitário»

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«Ele não acredita no Paraíso mas acalenta a esperança da condenação eterna». In Virginia Woolf

As patologias da dívida
«(…) Um professor francês expatriado na Líbia, chocado com as caricaturas de Maomé no Inverno de 2006, e notando os ânimos exaltados dos seus estudantes, escreve uma carta ao jornal, Le Monde (Robert Solé, 19-20 de Fevereiro de 2006) na qual comunica a sua indignação e conclui com as seguintes palavras: Somos ainda os senhores do mundo e parecemos ter esquecido todos os outros. Somos os senhores do mundo! Proferida por um Disraeli ou um Jules Ferry, há mais de um século, a frase não teria causado surpresa. Mas hoje num jornal de esquerda, que presunção! Veremos que esta ânsia de poder é paradoxalmente motivada por um remorso inextinguível.

Ceder o coração ao inimigo
A Europa tem indubitavelmente parido monstros. Tem de igual modo gerado teorias que permitem compreender e destruir esses mesmos monstros. Porque, desde o tempo dos Conquistadores, a Europa elevou ao mais alto nível a aliança do progresso e da crueldade, do poder técnico e da agressividade e, uma vez que se deparou com séculos de orgias sanguinárias, também se tornou extremamente sensível às loucuras da espécie humana. Substituindo os Árabes e os Africanos, a Europa instituiu o tráfico negreiro transatlântico mas engendrou também o abolicionismo e pôs fim à escravatura antes de outras nações. Cometeu os piores actos e pôs em prática meios para erradicar o mal. A singularidade da Europa é um paradoxo levado ao extremo: da ordem medieval nasce o Renascimento, do feudalismo a aspiração democrática, da opressão da Igreja o século das Luzes. As guerras de religião favorecerem o pensamento laico, os antagonismos nacionais a esperança de uma comunidade supranacional, as conquistas ultramarinas suscitam o anticolonialismo, as revoluções do século XX o movimento antitotalitário. A Europa, semelhante a um carcereiro que nos aprisiona e nos cede as chaves da cela, deu simultaneamente à luz o despotismo e a liberdade. Enviou militares, mercadores e missionários (daí o importante papel desempenhado pelas Igrejas nos processos de descolonização, excepto em Portugal onde a Concordata de 17 de Maio de 1940 submetia as missões católicas ao controlo do Estado) para subjugar e explorar terras longínquas. Inventou também e antropologia que é uma certa forma de ver pelos olhos do estrangeiro, de pensar o outro em si e de se pensar no outro, numa palavra, é, uma certa forma de nos afastarmos daquilo que nos é próximo para nos aproximarmos daquilo de que nos afastámos.
Nesta área, a França cometeu abominações. É também graças à França que delas nos libertámos quando, finalmente, após convulsões terríveis, passou a conciliar os seus actos e os seus princípios. A aventura colonial padecia mortalmente de uma dupla contradição; impunham-se a populações longínquas costumes particulares, ornando-os com a máscara do universal. Impor pastis e baguettes aos Africanos e pudding aos Hindus era manter um império à custa do tribalismo. Portanto, sujeitando continentes às leis de uma metrópole que lhes inculcava por outra via ideias nacionais e a noção do direito dos povos à autogovernação, britânicos, franceses e holandeses entregaram aos dominados os instrumentos da sua emancipação. Os colonizados que reclamavam a sua independência limitaram-se e invocar as regras que tinham aprendido com os senhores e a expulsá-los com as armas que estes inadvertidamente lhes tinham cedido. Por exemplo, foi em nome dos direitos do homem e do cidadão que, nos finais do século XVIII, os escravos do Haiti e de São Domingos se revoltaram e discutiram os fundamentos do novo contrato social que tinha por base a abolição da escravatura, a igualdade racial, e o fim da sociedade colonial e que, em 1954, os novos dirigentes históricos da FLN argelina erem fruto da escola francesa e absorviam os ideais revolucionários que os incitariam a sublevar-se contra Paris». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.

Cortesia de PEA/JDACT