terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Mito e Tradição em Dalila Pereira Costa. Manuel Gama. «… que sempre conduzem uma pátria, são como que as suas sementes que geram, estruturam e dão coesão à sua cultura. E, numa visão arquetípica, tradição e mito são a mesma realidade sob a mesma cor esbatida em tons diferentes: “a tradição requer o mito e o mito exige a tradição”»

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Resumo:
«Tradição e mito são simultaneamente dois temas fundamentais do horizonte antropológico e dois pilares de suporte da estrutura do pensamento de Dalila Pereira Costa. O mito é uma forma de ler a realidade. Se em Dalila Pereira Costa encontramos esta visão hermenêutica, é também evidente que o mito aparece como o motor da acção dos povos e da regeneração das culturas. O esbatimento dos mitos leva à perca da alma das culturas. O povo que não tem os seus mitos tende para a inanidade. Por seu lado, a tradição de uma pátria ganha inteligibilidade quando vertida nos seus símbolos, nos seus símbolos tradicionais. Estes não são coisa morta, elementos de um conhecimento erudito ou arqueológico, passado, mas bem pelo contrário, como afirma Dalila Pereira Costa».

«Mito é um conceito complexo e difícil, pois tanto pode velar como desvendar a realidade. Neste sentido, dados os seus tão diversos níveis de significação, se pode entender a expressão de Fernando Pessoa: O mito é o nada que é tudo. Se na sua primeira acepção, o mito é um relato fabuloso de conteúdo religioso, que depois apareceu a significar a representação, de estrutura imaginativa, com a apreensão de valores, a noção de mito passou além do domínio religioso, sendo então o relato imaginário que tem o valor de símbolo. Neste aspecto, afastado já do seu sentido primitivo, o mito ganhou o significado de projecção no futuro da realização de um ideal, aproximando-se, aqui, do conceito de utopia. A tradição, descoberta pela hermenêutica para o campo filosófico, é o elemento constitutivo da historicidade e da compreensão do homem. O homem não pode sair da História para a poder pensar, estando, pois, condicionado por ela. Ou seja, o homem não tem conhecimento de si, da natureza e da História, sem mergulhar na tradição. No entanto, se a tradição é condição de conhecimento que lhe abre novas perspectivas, se for encarada como via absoluta pode paralisar o pensamento. Assim, a tradição, só quando portadora de passado e de futuro, é capaz de abrir horizontes novos de compreensão e de possibilidade.
Quanto a nós, tradição e mito são simultaneamente dois temas fundamentais do horizonte antropológico e dois pilares de suporte da estrutura do pensamento de Dalila Pereira da Costa. Neste findar de século (XX), de ligação tão íntima com a última metade do anterior-, em que a mentalidade positivo-cientificista parece querer alimentar o devir apenas no aqui e agora, é importante que se mantenha viva a chama do saber não positivista que, apesar de obnubilado por saberes ostentatórios, ainda permanece, afinal, como a estrela que indica o norte. Grande limitação a da cultura presente, que faz tábua-rasa dos mistérios e que quer fazer crer que fora dos trilhos do logismo racionalista e do experimentalismo não há caminhos de verdade. Já António Quadros deixara anotado que o conjunto da obra de Dalila Pereira Costa inclui por um lado, o domínio ou a vertente de uma literatura puramente visionária e mística, por outro, o de uma hermenêutica especialmente empenhada na sondagem e decifração de símbolos, de mitos, de textos sagrados, de uma poesia e de uma novelística onde haja predomínio do elemento transcendental sobre os elementos positivos e sociológicos. É também assim que nós vemos o pensamento da nossa escritora: todo ele repassado pelo brilho dos mitos, em que a tradição é sondada como caminho de verdade e as dimensões de imortalidade e eternidade sempre aparecem no horizonte.
O mito é uma forma de ler a realidade. Se em Dalila Pereira Costa encontramos esta visão hermenêutica, é também evidente que o mito aparece como o motor da acção dos povos e da regeneração das culturas. O esbatimento dos mitos leva à perca da alma das culturas. O povo que não tem os seus mitos tende para a inanidade. Tal seria o efeito do positivismo do século XIX, que intentou desmoronar as visões míticas e destruir todos os heróis. É numa linha contrária a esta tendência alastrante que vemos irradiar o pensamento de Dalila Pereira Costa. Veja-se especialmente a sua obra Da Serpente Imaculada (1984), impregnada pela força de figuras míticas como Anas, Tagus, Atégina, Endovélico, Minius. Neste seu estudo faz-se também a análise dos dois mitos propulsores da expansão portuguesa: a missão e a saudade, ligados respectivamente às acções da cruzada e da emigração. Perante os desmandos imediatos à implantação da República, passados meia dúzia de dias, escrevia sensatamente Sampaio Bruno que era necessário e indispensável o respeito pela grande lei da continuidade histórica: A lei da continuidade histórica, dizia, reside em que as transformações racionalistas contem com o factor da realidade da tradição, de modo que se não suponha possível um princípio na efectividade social só porque ele seja exacto e justo na esfera da especulação pura. No mesmo sentido vai o pensamento de Dalila Pereira Costa. As transformações requerem filiação, que só na tradição encontram a força de futuro, ao mesmo tempo que aquela é fonte de sobrevivência e progresso de uma nação.
A tradição de uma pátria ganha inteligibilidade quando vertida nos seus símbolos, nos seus símbolos tradicionais. Estes não são coisa morta, elementos de um conhecimento erudito ou arqueológico, passado, mas, bem pelo contrário, diz Dalila, elementos vivos e eternos, capazes de eternamente serem conhecidos e usados por uma comunidade na sua vida completa: no pensamento e na acção, como elementos de integração. Os símbolos são a expressão visível, com força de acção, da tradição como espelho de um passado útil e utilizável. A tradição é a grande fonte onde a pátria deve beber a sua força fecundante de desenvolvimento, e nela criará novos ciclos ou formas de vida, de futuro. Enfim, na tradição reside a única força possível de futuro. Como refere Dalila, os arquétipos fundamentais, que sempre conduzem uma pátria, são como que as suas sementes que geram, estruturam e dão coesão à sua cultura. E, numa visão arquetípica, tradição e mito são a mesma realidade sob a mesma cor esbatida em tons diferentes: a tradição requer o mito e o mito exige a tradição. Daí que, para concluir, tomemos o apelo intemporal, e ao mesmo tempo tão oportuno neste findar de milénio (XX), de Dalila Pereira Costa: Agora e aqui, na pátria portuguesa, urgiria realizar o gesto repetido do alquimista, o que nada descobre de novo, mas tão-somente vê de novo um segredo transmitido numa tradição, através dos símbolos». In Manuel Gama, Mito e Tradição em Dalila Pereira Costa, Colóquio Dalila Pereira Costa e as Raízes Matriciais da Pátria, Porto, Maio, Departamento de Filosofia, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade do Minho,1996.

Cortesia da UMinho/JDACT