terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Luís XVI. França. Monarca Infeliz. Américo Faria. «Os revolucionários, apreendendo a maneabilidade que tal espírito lhes oferecia, não fizeram mais do que estender o braço e agarrar firmemente a magnífica oportunidade para lhe fazerem a vida negra»

Cortesia de wikipedia

O ‘pobre homem’ que não queria reinar
«(…) Escreve Philippe Erlanger num bem elaborado trabalho: Na verdade, os Capetos não deixaram jamais de atravessar o círculo infernal das revoluções. Carlos V, ainda delfim, foi enlameado com o sangue dos seus servidores mais próximos, massacrados pelos homens de Etienne Marcel, e sofreu a Jacquerie camponesa. Tendo assistido, em criança, às insurreições dos Maillotins ou Tuchins, prontos a degolar todos os que não tivessem as mãos calosas, Cados VI, já adulto e louco, soube, entre dois acessos, que as muralhas das bastilhas não resistiriam ao furor popular (1413). Dois terços da França levantaram-se em armas contra Luís XI. Em 1589, Henrique III, excomungado, cercado, reinava apenas em três cidades: Tours, Blois e Beaugency. Henrique IV conquistou seu reino pedaço a pedaço. As guerras civis encheram o reinado de Luís XIII. O próprio Luís XIV foi obrigado a fugir de Paris, transformada em rio de sangue, e a errar, meio proscrito, sob a protecção de Turenne.
Tudo isso Luís XVI teria visto nessa visão retrospectiva, que o confortaria salutarmente, se não fosse o medo, o terror que se lhe aninhava no ânimo tíbio e o aprisionava dos seus efeitos desencorajantes. A sua fraqueza e indecisão, dizia dele o duque de Provença, seu irmão, estão além de tudo o que se possa classificar. Imaginem-se bolas de marfim oleosas, que em vão tentaremos manter juntas, e teremos uma alegoria perfeita do seu carácter. Ele é somente um pobre diabo, ou, como os seus contemporâneos o apelidavam, um Rapaz Grande. Os revolucionários, apreendendo a maneabilidade que tal espírito lhes oferecia, não fizeram mais do que estender o braço e agarrar firmemente a magnífica oportunidade para lhe fazerem a vida negra.
Luís XVI, demasiadamente honesto, sonhando com a felicidade do seu povo, aplicava-se com desvelo em satisfazer-lhe os anseios, só muito tarde aprendendo à sua custa, amargamente, que quanto mais cedesse mais os insaciáveis revolucionários lhe exigiriam. Tal política, era fatal, não podia agradar a todos e os próprios que ficavam satisfeitos não demoravam a recair na insatisfação. Identificado, pela História da Rebelião do conde de Clarendon, um dos seus livros predilectos, sobre a vida de Carlos I da Inglaterra (o Capeto tinha, também, sangue Stuart nas veias!) estudara pacientemente o seu reinado, prometendo a si próprio não cair nos mesmos erros que haviam levado aquele remoto parente ao patíbulo. Na realidade, ambos caminharam para um mesmo trágico e semelhante fim, embora por sendas distintas e opostas entre si, absolutamente antagónicas. Carlos I era um fantasma medonho que povoava frequentemente os sonhos do Capeto, o que, é de crer, mais pavorosa lhe tornaria, ainda, a árdua missão de reinar.
Maria Antonieta, a rainha, por seu turno, levava uma existência que não podia escapar à maledicência e à calúnia, e participava, de forma activa, nos actos de pura administração, em medidas nem sempre consentidas pelas circunstâncias. A impopularidade dela foi crescendo, crescendo, arrastando-o a ele na mesma onda de desfavor público. Com a convocação do Parlamento e os motins a que aquela deu causa, as coisas pioraram para a realeza, A monarquia ia-se tornando gradualmente execrável para toda a gente, excepto para os favorecidos. O povo estava, agora, a viver numa exaltação contínua, estimulada pelos jornais revolucionários e pelos oradores populistas. Um rio de literatura malsã, difamatória, encharcava, subvertia a reputação da corte, preparando irresistivelmente a atmosfera para os próximos futuros acontecimentos, que irrigariam de sangue o solo francês. No entanto, como a época era de festas atordoantes, só raros aristocratas teriam a noção exacta, nessa altura, de que a realeza estava caminhando vertiginosamente para o abismo. A terrível verdade só um pouco mais tarde, quatro anos depois, se tornaria evidente, horrorizando, pelas suas consequências imprevisíveis, aqueles próprios que haviam contribuído decisivamente para a decadência do trono». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.

Cortesia de LCEditora/JDACT