sábado, 3 de janeiro de 2015

Ensaios. A História de Portugal. Vitorino Magalhães Godinho. « Seja como for, nas suas decisões essa realeza tem de entender-se corn os riquis hominibus mas também com mercatoribus et cum civibus et bonis horninibus de consiliis regni mei (Lei de 26-XII-1253), e nas cortes de Lisboa de 1371»

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A evolução dos complexos histórico-geográficos
«(…) Até Ceuta, teria sido, segundo L. de Azevedo, a monarquía agrária; segundo J. Cortesão, o género de vida nacional definir-se-ia antes pelo comércio marítimo a distância com base na agricultura. Caracterizações certamente equívocas e até inadequadas dessa primeira época, como Sérgio tão bem provou. A monarquia era agrária só no sentido de que os réditos do soberano, como os do clero e da nobreza, provinham da renda da terra. O modo de vida nacional é verdadeiramente a agricultura, e sê-lo-á ainda por longos séculos, no sentido de que a esmagadora maioria da população activa nela se ocupa, de que o valor global da produção agrícola ultrapassa o dos outros recursos, e de que quase toda a população dela vive afinal; mas os vectores dinâmicos dessa econornia são a salicultura, a indústria da pesca e o comércio marítimo que exporta para Flandres, Levante hispânico e Maghrebe o sal, o pescado, os vinhos, o azeite, as frutas (com que se obtêm as dobras mouriscas), os coiros, a cortiça, a grã, importando os cereais nos anos de escassez, os têxteis flamengos e italianos, o ferro da Biscaia, as madeiras do Norte, a prata da Europa central e oriental, as especiarias, o açúcar. População rústica, pois como cidades contam-se tão só Lisboa, que orçará pelos 40000 habitantes, e o Porto com uns 8000; além disso, vilas de 1000 a 3000 habitantes. A grande circulação interna ventila-se por 64 feiras (68 em 1383), e corre, como aliás correrá durante longos séculos, pela navegação de cabotagem, pelas barcas fluviais e pelas récuas tocadas pelos recoveiros. Uma monarquia relativamente centralizada, capaz de leis gerais desde o século XIII, mas cujo aparelho é constituído essencialmente pelos ricos-homens poderosamente instalados no topo, pelos fidalgos de solar e outros e pelos cavaleiros (sobretudo de linhagem) que partilham em hierarquia alcaidarias e judicaturas, dispondo dos meios militares e judiciais; defronte; um clero opulento mas politicamente posto no seu lugar, embora também partilhe da engrenagem estadual. Seja como for, nas suas decisões essa realeza tem de entender-se corn os riquis hominibus mas também com mercatoribus et cum civibus et bonis horninibus de consiliis regni mei (Lei de 26-XII-1253), e nas cortes de Lisboa de 1371 no capítulo I insiste-se com o rei que nom faça guerra nem moeda sem conselho do povo, salvo com conselho dos nossos cidadãos e naturais.
Uma sociedade organizada em senhorios e concelhos. Estes concelhos são, na maioria dos casos, comunidades de proprietários rurais alodiais, herdadores, quer cavaleiros-vilãos cujos bens lhes permitem ter cavalo e obrigados ao fossado, bem perto dos escudeiros, quer peões que pagam jugada; noutros casos, comunidades de mercadores e mesteirais. Abaixo, os malados, que não têm propriedade, logo vivem em casa alheia, e, em pequeno número, os escravos. Desde a revolução de 1383-5 e da tomada de Ceuta estrutura-se um outro cornplexo histórico-geográfico. Isso resulta da regressão económica internacional e do ambiente de crise social em toda a Europa, ligados à descida dos preços, à contracção dos negócios, às dificuldades de mão-de-obra, instabilidade monetária, baixa real dos réditos da nobreza. As jacqueries e os motins urbanos de aprendizes, oficiais e pequenos mesteirais contra os graúdos, aproveitando as divisões da nobreza e o descontentamento da alta burguesia, levam os mercadores, mesteirais e escudeiros a aliarem-se com a arraia miúda contra os nobres e o alto clero; assim aquela revolução vai dar uma reconstrução mas não idêntica dos antigos quadros sociais em proveito de burgueses e escudeiros promovendo-se a cavaleiros e nobres; a capilaridade social aumenta, o poder passa para quadros novos, aumenta a força política das cornunidades, os letrados tornam-se parte fundamental do pessoal público, o Estado começa a organizar-se como burocracia; as cortes reúnem-se 27 vezes em meio século, quando só se tinham reunido 9 no meio século precedente; o povo miúdo passa a intervir na vida municipal pelas Casas dos Vinte e Quatro. D. Duarte; além das três ordens tradicionais dos oradores (clero), defensores (guerreiros), lavradores e pescadores (os que mantêm o mundo), reconhece já os oficiais, ou seja, a administração pública, e até os que usam de algumas artes aprovadas e mesteres e outros, isto é, os mercadores, mesteirais, mareantes e profissões liberaís (Leal Conselheiro, 1438).
Em 1472 os próprios procuradores das cidades e vilas dividem a sociedade nas seguintes categorias:
  • Fidalgos;
  • Cavaleiros;
  • Escudeiros;
  • Mercadores;
  • Mesteirais;
  • Lavradores e trabalhadores.
Nas Cortes de 1481-2, a classificação é ligeiramente diferente:
  • Fidalgos;
  • Escudeiros e gente limpa (sem dúvida oficiais e mercadores);
  • Gente de ofícios mecânicos e outra de baixa mão;
  • Lavradores, criadores e gente desta sorte.
Esta mesma oscilação é reveladora: fundamentalmente, temos um estrato supremo de fidalgos e cavaleiros, depois outro de escudeiros, mercadores e funcionários, em terceiro lugar os mesteirais, em quarto os lavradores, e abaixo sem dúvida os serviçais e jornaleiros, e no ínfimo os escravos em aumento». In Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, Sobre a História de Portugal, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1ª Edição, 1968.

Cortesia LSdaCosta/JDACT