quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Cratino. A Sombra de um Grande Poeta. Maria de Fátima Silva. «De gracejos esporádicos, os ataques ampliaram-se à totalidade da intriga, as vítimas ganharam a consistência de verdadeiras personagens dramáticas, dentro de um contexto que permitiu à comédia…»

Cortesia de wikipedia

«Do muito que sossobrou da produção cómica ateniense na sua primeira fase, não mais nos resta do que uma pálida sombra, que recuperamos, cheia de obscuridades e interrogações, de testemunhos antigos de épocas várias. São primeiro os contemporâneos, aqueles que apreciaram de perto o fenómeno, sobretudo por nele serem também intervenientes, e que, motivados pela consciência profissional que leva a uma reflexão sobre a arte, ou pelos amargores de uma concorrência que o sistema concurso fomentava, teceram comentários sobre o género e sobre os rivais activos na disputa pelos favores da Musa. Neste número avulta o nome de Aristófanes, para além de comediógrafo de grande sucesso, um teórico feito de uma longa experiência na cena de Dioniso, atento ao fluir imparável da comédia e seu permanente crítico e comentador; guiados pelo seu testemunho, somos estimulados a um percurso que se inicia nos tempos longínquos de uma popularidade feita de improviso e de espontaneidade burlesca, até aos dias mais promissores em que se abria à comédia um caminho de progresso e aperfeiçoamento, através da presença, oficialmente reconhecida, nos festivais dramáticos da polis. Um outro tipo de informação, de natureza diversa mas de significado também relevante, é a que provém dos textos burocráticos, que acompanharam a gestão da festa de Dioniso em Atenas, registos de nomes de poetas, títulos de peças, vencedores nos concursos, datas das produções; por eles somos orientados para uma análise mais quantitativa do fenómeno, que documenta a expansão alcançada, embora alguns aspectos de sucesso ou preferência, por temas ou por poetas, se tornem também patentes. Mais tarde, quando a comédia se situava já entre as glórias passadas da cidade de Palas, foi outra a motivação para toda uma série de comentários e citações dos velhos comediógrafos. Em primeiro lugar, um sentido de clarificação motivou a redacção de escólios, notas informativas acrescentadas às cópias dos textos, a procurarem esclarecer um leitor menos sensibilizado, a séculos de distância, para pormenores ou referências então já incompreensíveis. Dentro do mesmo espírito, elaboraram-se sumários breves, a conduzirem a leitura para os tópicos essenciais de cada peça, que vieram a servir de magro substituto do próprio texto, quando entretanto desaparecido. Não menos interessante é o papel dos diversos biógrafos, críticos literários e autores de vocabulários e léxicos, que, nos textos antigos ainda ao seu dispor, buscaram matéria para estudos e registos. Dessa actividade resultaram tratados expressamente dedicados à produção literária do passado, listagens vocabulares voltadas para a tradição linguística do grego, ou simples abonações, nos mais diversos contextos, através do testemunho de citações dos antigos. Complementares umas das outras, inestimáveis como informação única de um passado que demandamos, estas vozes não satisfazem a nossa curiosidade e muito mal preenchem o espaço deixado vazio pela acção devastadora do tempo. A mão do acaso, sobreposta a todos os propósitos e objectivos, seleccionou para nós um material, de relevância e dimensão variadas, que, mais do que dar respostas, suscita novas interrogações e dúvidas desesperadamente insolúveis. Apesar de todas as dificuldades, um percurso por esse campo de ruínas continua uma tentação, sobretudo se, mesmo que escassos, os fragmentos que nos restam, articulados com as informações disponíveis, podem devolver a imagem, embora ténue, de uma celebridade perdida. É esse o convite que um nome sonante, como o de Cratino, propõe ainda ao estudioso moderno. De uma geração nascida na primeira metade do séculos V a. C., Cratino suscitou em torno de si um coro de vozes que associam a sua actividade à definição de um progresso decisivo na história da comédia. Ε foi como cultor da agressividade no ataque nominal, à maneira dos poetas iâmbicos e em particular de Arquíloco, que Cratino imprimiu, na simplicidade do komos, um vigor e objectivo inteiramente novos.
Tal proeza encontra já o merecido reconhecimento na parábase de Cavaleiros de Aristófanes, onde o autor, a pretexto de exemplificar a caducidade do êxito literário, cataloga e caracteriza os precursores, a quem coube determinar o ritmo de evolução no passado do género. A invectiva não era um dado novo na produção cómica, antes fazia parte de uma tradição quase lendária, onde o gracejo nominal aparecia como uma manifestação episódica e destacada de um contexto preciso. O seu objectivo não teria então qualquer outro alcance para além de divertir uma assistência ainda pouco exigente. Assim, a intervenção de Cratino neste processo teria vindo redimensionar e justificar, em termos inovadores, a velha tradição. De gracejos esporádicos, os ataques ampliaram-se à totalidade da intriga, as vítimas ganharam a consistência de verdadeiras personagens dramáticas, dentro de um contexto que permitiu à comédia ocupar-se, numa perspectiva de intervenção didáctica, de questões políticas e sociais. São significativos os termos em que Aristófanes descreve a atitude literária de Cratino, identificando-o com caudal poderoso que, numa marcha sem barreiras, arrastasse, arrancadas pela raiz, árvores de grande porte, plátanos e carvalhos». In Maria de Fátima Silva, Cratino.´, A Sombra de um Grande Poeta, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT