quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A Voz dos Deuses. João Aguiar «O meu bisavô foi o último a seguir a carreira das armas: alistou-se no exército cartaginês, serviu sob o comando de Aníbal Barca e tombou em Itália numa escaramuça com as legiões romanas. Os seus restos mortais nunca foram recuperados…»

jdact e cortesia de wikipedia

«Em 147 a.C., alguns milhares de guerreiros lusitanos encontram-se cercados pelas tropas do pretor Caio Vetílio. Em princípio, trata-se apenas de um episódio da guerra que a República romana trava há vários anos para se apoderar da Península Ibérica. Mas os lusitanos, acossados pelo inimigo, elegem um dos seus e entregam-lhe o comando supremo. Este homem, que durante sete anos vai ser o pesadelo dos romanos levou à revolta grande parte dos povos ibéricos e foi responsável pelo início da célebre guerra da Numância. Viriato foi um verdadeiro génio militar, político e diplomata. Mas, sobretudo, Viriato foi o defensor de um mundo que morria asfixiado pelo poderio romano: o mundo em que mergulham as raízes mais profundas de Portugal e de Espanha. É este mundo, já em declínio, que este livro tenta evocar».

Prólogo. Ano 84 a.C.
«Arcóbriga e Meróbriga são cidades mortas desde que os habitantes foram obrigados a descer para o vale. Abandonadas no alto dos seus outeiros, elas dominam ainda a vasta planície ondulada, mas aqui, no santuário, o deus fica-lhes sobranceiro porque este monte, que é a sua morada terrena, ultrapassa em altura todos os morros vizinhos. Arcóbriga e Meróbriga nasceram sob a protecção divina. Tanto quanto a memória dos homens recorda, as muralhas das duas povoações nunca cederam a um ataque e mesmo quando soou a hora da derrota não houve sofrimento ou ignomínia. Por isso, os antigos habitantes, agora instalados ao longo da ribeira, continuam a trazer oferendas à divindade, pois sabem que lhe devem a vida, o pão e a segurança que lhes permite amanhar a terra, caçar, apascentar o gado e, pela tardinha, acender com toda a tranquilidade os seus fogos para preparar a refeição da noite. É o fumo desses fogos que vejo espalhar-se na planície, ao sabor do vento fresco e forte. Também a fogueira que me protege contra o frio se verga ao ímpeto do vento, mas quando olho em frente posso distinguir, no interior do templo, cuja porta está aberta, a chama sagrada ardendo erecta e impassível, sem que um sopro a perturbe. Mais perto de mim, ao ar livre, as flores que cobrem a ara dos sacrifícios são varridas para o chão. Esta é a minha hora preferida. Os ritos estão executados, as ofertas dos fiéis consagradas, os acólitos recolheram aos seus alojamentos situados na encosta, para cozinhar a ceia, e os peregrinos que desejam consultar o oráculo ainda não chegaram. Finalmente estou só, envolvido pelo grande silêncio da terra. E este silêncio, tão profundo que nele se perdem o canto dos pássaros e o silvo do vento, liberta a minha alma. Quando nele mergulho, o deus fala-me, por vezes. Nem sempre foi assim. Os deuses falam aos homens com vozes diferentes, conforme eles são capazes de entender. Os jovens ouvem essas vozes no estrépito das batalhas ou no acto do amor, os velhos aprendem a escutar de outra maneira. Outrora, também eu ouvi a voz dos deuses no amor, na guerra, nos sonhos e na tempestade, até mesmo na fala de outros mortais. Agora, que já passaram oitenta invernos na minha vida, se é que não deixei escapar alguns sem dar por tal, resta-me o silêncio.
Não sinto amargura, apenas fadiga. Porém a fadiga vai-se dissolvendo, como eu próprio me dissolvo lentamente no ar puro e luminoso do santuário (quando, na Primavera passada, torci um tornozelo e tive de ser transportado até ao templo pelos acólitos, eles ficaram surpreendidos ao sentir o meu corpo tão leve e frágil). Vivi bastante mais que a maioria dos homens. Durante muito tempo não compreendi por que razão os deuses conservaram uma vida que, julgava eu, havia cumprido o seu destino em plena juventude. Agora já sei, como sei muitas outras coisas: ouvi no silêncio a voz da divindade. Por isso aqui estou sentado, gravando estas palavras em tabuinhas de cera que vou amontoando à minha frente. Além, naquele cofre reforçado com chapas de ferro, guardo o meu tesouro mais precioso, alguns rolos de papiro (o melhor papiro do Egipto) onde copiarei em forma definitiva os textos ensaiados na cera. Não temo que a morte me surpreenda a meio do trabalho, pois obedeço ao deus e ele preservar-me-á até que eu cumpra a sua vontade. Estou nas suas mãos e nada mais importa. In A história de Tongio filho de Tongétamo, sacerdote do grande deus Endovélico e guardião do seu santuário.

O oráculo
Eu nasci sob o jugo de Roma. O antigo reino do Cineticum, famoso pelos seus bosques, a doçura do seu clima e as suas riquezas, é uma terra que desde sempre atraiu a presença dos deuses e a cobiça dos homens. No ano em que vim ao mundo, já as águias romanas dominavam metade da nossa costa, da foz do Anas para ocidente, e pertenciam-lhes as grandes cidades de Ossónoba, no litoral, e Conistorgis, no interior. Balsa, a minha terra natal, não é tão populosa mas no tempo dos Fenícios foi um entreposto importante e ainda hoje figura entre os principais portos do Cineticum. Porque nasci junto ao mar, ele é uma das primeiras recordações da minha infância. Outra, por estranho que pareça, é um amuleto que a minha mãe me pendurou ao pescoço para afastar as febres e as dores quando os primeiros dentes começaram a romper. Esse amuleto, uma presa de javali, perfurada, suspensa de um fio de couro muito fino e flexível, nunca me abandonou e deve ter sido graças a ele que, em toda a minha vida, não me lembro de ter sofrido dos dentes. Do lado materno descendo dos Cónios, cujos reis fizeram do Cineticum um país próspero. Essa prosperidade trouxe comerciantes e invasores. Uns e outros sucederam-se ao longo dos tempos: vindos do mar ou da vizinha Bética, estabeleceram-se entre nós e acabaram por criar laços com a população cónia. A sua vinda provocou muitas mudanças, entre elas o desaparecimento da dinastia real que nos unificara. Mas o Cineticum soube absorver e assimilar os seus dominadores (pelo menos, até os Romanos aparecerem). Na minha família, como em todas as famílias das nossas cidades, há quase tanto sangue fenício ou turdetano como antigo sangue cónio. As guerras e as invasões alteraram também o que parecia ser o destino imutável dos homens do meu clã. Durante muitas gerações, desde a época dos reis, nós pertencemos aos notáveis de Ossónoba; quando os guerreiros envelheciam e depunham as armas tomavam assento no Conselho dos Anciãos e ocupavam-se das terras que possuíam a leste do Promontório Sagrado. A vinda dos estrangeiros acabou por quebrar essa tradição porque os laços do clã enfraqueceram e as famílias separaram-se, espalharam-se por todo o Cineticum ou foram mais para norte, além das serras. Cada agregado passou a contar somente com os seus próprios membros ou com as amizades e alianças feitas na terra onde se instalara.
O meu bisavô foi o último a seguir a carreira das armas: alistou-se no exército cartaginês, serviu sob o comando de Aníbal Barca e tombou em Itália numa escaramuça com as legiões romanas. Os seus restos mortais nunca foram recuperados e por isso os filhos não puderam cumprir os rituais fúnebres. Diz-se que os mortos não perdoam a quem os deixa sem sepultura e o certo é que em breve a sorte da família mudou e os quatro rapazes perderam quase todo o património que haviam herdado. O terceiro filho, porém, não aceitou passivamente a má fortuna: sem consultar ninguém, executou ele mesmo os ritos apropriados perante um sepulcro vazio que comprara, para que o espírito do defunto soubesse que lhe eram prestadas as honras exigidas, e tomando sob a sua protecção o irmão mais novo (que viria a ser o meu avõ materno), foi estabelecer-se em Balsa como mercador. Morreu cedo, antes de casar, mas o meu avô, um homem inteligente e enérgico, aprendera o ofício e soube refazer a riqueza perdida. Casou com uma jovem pertencente à pequena nobreza local e dela teve dois filhos: Camalo, que ele iniciou nos negócios, e Camala, a minha mãe». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.

Cortesia de ASAEditores/JDACT