sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A noite. Guy de Maupassant. «Mas como explicar o que acontece comigo? E, mesmo, como explicar que sou capaz de contá-lo? Não sei, já não sei, sei apenas que isso existe, pronto. Portanto, ontem, era ontem?, sim, sem dúvida…»

jdact e wikipedia

«Amo a noite apaixonadamente. Amo-a como quem ama o seu país ou a sua amante, com um amor instintivo, profundo, invencível. Amo-a com todos os meus sentidos, com os meus olhos que a vêem, com o meu olfacto que a respira, meus ouvidos que escutam o seu silêncio, com toda a minha carne que as trevas acariciam. As cotovias cantam ao sol, no ar azul, no ar quente, no ar leve das manhas claras. O mocho voa a noite, mancha negra que passa pelo espaço negro, e, radiante, inebriado pela negra imensidão, solta seu grito vibrante e sinistro. O dia cansa-me e aborrece-me. É brutal e barulhento. Levanto-me com dificuldade, e visto-me com lassidão, saio a contragosto, e cada passo, cada movimento, cada gesto, cada palavra, cada pensamento me cansa como se eu levantasse um fardo que me esmagasse. Mas, quando o sol se põe, invade-me uma alegria confusa, uma alegria de todo o meu corpo. Desperto, animo-me. À medida que crescem as sombras, sinto-me outro, mais moço, mais forte, mais alerta, mais feliz. Olho para a grande sombra suave caindo do céu e se adensando: ela afoga a cidade, como uma onda impalpável e impenetrável, ela esconde, apaga, destrói as cores, as formas, abraça as casas, os seres, os monumentos com o seu toque imperceptível. Então sinto vontade de gritar de prazer como as corujas, de correr pelos telhados como os gatos; e um desejo de amar, impetuoso, invencível, arde nas minhas veias.
Vou, caminho, ora pelos arredores com sombras, ora pelos bosques vizinhos de Paris, onde ouço rondarem as minhas irmãs, as bestas, e os meus irmãos, os caçadores clandestinos. O que amamos com violência sempre acaba nos matando. Mas como explicar o que acontece comigo? E, mesmo, como explicar que sou capaz de contá-lo? Não sei, já não sei, sei apenas que isso existe, pronto. Portanto, ontem, era ontem?, sim, sem dúvida, a menos que tenha sido antes, um outro dia, um outro mês, um outro ano, não sei. Mas deve ser ontem, já que o dia não mais raiou, já que o sol não reapareceu. Mas desde quando dura a noite? Desde quando?... Quem poderá dizer? Quem algum dia saberá? Assim, ontem saí, como faço todas as noites, depois do jantar. Fazia um tempo muito bonito, muito suave, muito quente. Ao descer para os bulevares, olhei acima de minha cabeça o negro rio cheio de estrelas, recortado no céu pelos telhados das casas, que giravam e faziam esse riacho rolante de astros ondular como um rio de verdade. No ar leve, tudo estava claro, desde os planetas até os bicos de gás. Tantas luzes brilhavam lá no alto e na cidade que as trevas pareciam luminosas. As noites luzentes são mais alegres que os grandes dias de sol. No bulevar, os cafés rutilavam; todos riam, passavam, bebiam. Entrei no teatro, por alguns instantes, em que teatro? Não sei mais. Lá dentro estava tão claro que me senti agoniado, e saí com o coração meio obscurecido por aquele choque brutal de luz nos dourados do balcão, pelo cintilar factício do enorme lustre de cristal, pela cortina de luzes da ribalta, pela melancolia daquela claridade falsa e crua. Cheguei aos Champs-Elysees, onde os cafés-concerto pareciam focos de incêndio no meio das folhagens. As castanheiras roçadas pela luz amarela tinham um aspecto de pintadas, um aspecto de árvores fosforescentes. E os globos de luz eléctrica, parecendo luas cintilantes e pálidas, ovos de lua caídos do céu, pérolas monstruosas, vivas, faziam empalidecer, sob a sua claridade nacarada, misteriosa e imperial, os fios de gás, do feio gás sujo, e as guirlandas de vidros coloridos». In Guy de Maupassant, A noite, extraído de Contos fantásticos do século XIX, tradução de Rosa D’Aguiar, Companhia das Letras, São Paulo, Biblioteca do Esquerda.

Cortesia de Wikipédia/JDACT