sábado, 24 de janeiro de 2015

A Loba de França Maurice Druon. «… ‘os pastorinhos’ marchavam em direcção a encontros misteriosos. Às suas tropas iam-se juntando padres excomungados, monges apóstatas, desordeiros, ladrões, mendigos e pu… À cabeça dos cortejos onde jovens de ambos os sexos…»

jdact e wikipedia

«(…) E tanto o papa como o rei se mostravam impotentes perante as hordas de iluminados que percorriam os caminhos, os rios humanos que engrossavam em cada encruzilhada, como se a terra da Flandres, da Normandia, da Bretanha e do Poitou tivesse sido enfeitiçada. Dez mil, vinte mil, cem mil... os pastorinhos marchavam em direcção a encontros misteriosos. Às suas tropas iam-se juntando padres excomungados, monges apóstatas, desordeiros, ladrões, mendigos e pu… À cabeça dos cortejos onde jovens de ambos os sexos se entregavam à pior licenciosidade, aos piores desmandos, era levada uma cruz. Cem mil viandantes andrajosos que entram numa cidade para mendigar depressa se voltam para a pilhagem. O crime, que começou por não ser mais que um acessório do roubo, depressa se tornou a satisfação de um vício. Os pastorinhos, devastaram a França ao longo de um ano inteiro, com um certo método na sua desordem, sem pouparem nem igrejas nem mosteiros. Paris, apavorada, viu o exército de salteadores invadir as suas ruas e o rei Filipe V de uma janela do seu palácio, procurar acalmá-los com as suas palavras. Exigiam do rei que os encabeçasse. Tomaram de assalto o Châtelet, mataram o preboste, pilharam a Abadia de Saint-Germain-des-Prés. Em seguida, uma nova ordem, tão misteriosa como a que os reunira, encaminhou-os para sul. Ainda os parisienses não se tinham acalmado e os pastorinhos já invadiam Orleães. A Terra Santa estava longe; quem teve de sofrer o seu furor foram Burges, Limoges, Saintes, o Périgord e o Bordelais, a Gasconha e o Agenais.
O papa João XXII, receoso ao ver a vaga aproximar-se de Avinhão, ameaçou de excomunhão os falsos cruzados. A necessidade que estes tinham de vítimas levou-os a atacar os Judeus. A partir de então, as populações urbanas, aplaudindo os massacres, passaram a confraternizar com os pastorinhos. Foram atacados os guetos de Lectoufe, de Auvilar, de Castelsarrasin, de Albi, de Auch, de Toulouse; aqui cento e quinze cadáveres, ali centro e cinquenta e dois... Todas as cidades do Languedoc tiveram direito à sua matança expiatória. Os judeus de Verdun-sur-Garonne serviram-se dos próprios filhos como projécteis e em seguida degolaram-se uns aos outros para não caírem às mãos dos loucos. Nessa altura o papa deu ordem aos seus bispos e o rei aos seus senescais de que os judeus, cujos comércios eram necessários, fossem protegidos. O conde de Foix, acorrendo em auxílio do senescal de Carcassona, viu-se obrigado a dar batalha aos pastorinhos, que, repelidos para os pântanos de Aigues-Mortes, morreram aos milhares, espancados, trespassados, enterrados na areia, afogados. A terra de França bebia o próprio sangue, engolia a própria juventude. O clero e os oficiais da coroa uniram-se para perseguir os fugitivos. As portas das cidades foram-lhes fechadas e os víveres e o alojamento recusados; foram encurralados nas passagens de Cévennes; todos os que foram capturados acabaram enforcados, aos vinte e aos trinta, em ramos de árvores. Alguns bandos erraram ainda durante perto de dois anos e acabaram por se dispersar para as bandas de Itália. A França, o corpo da França estava doente. Mal curada ainda a febre dos pastorinhos apareceu a dos leprosos.
Terão sido os leprosos, aqueles infelizes de carnes corrompidas, rostos de mortos, mãos transformadas em cotos, aqueles párias fechados nas suas leprosarias, antros de contágio e de pestilência onde procriavam entre eles e de onde apenas podiam sair com uma campainha na mão, os responsáveis pela contaminação das águas? Sim, porque no Verão de 1321 as nascentes, os poços e as fontes foram envenenados, em muitos sítios diferentes. E nesse ano o povo de França olhou cobiçosamente os seus generosos rios, onde só com receio da morte a cada novo golo de água alguém se atrevia a matar a sede. Teria o Templo deitado a mão a venenos misteriosos, feitos de sangue humano, de urina, de ervas mágicas, de cabeças de cobras, de patas de sapos esmagadas, de hóstias trespassadas e de pêlos de meretrizes, que todos asseguravam ter sido espalhados nas águas? Teria incitado à revolta o povo maldito, inspirando-lhe, como alguns leprosos confessaram sob tortura, a vontade de que todos os cristãos perecessem ou se tornassem eles próprios leprososIn Maurice Druon, Os Reis Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.

Cortesia de CLeitores/JDACT