domingo, 25 de janeiro de 2015

A Conspiração Sistina. Philippe Vandenberg. «Não, este jardim não tinha nada em comum com esses aglomerados botânicos, semelhantes a parques, que encontramos noutros conventos beneditinos, enquadrados pelas falanges de imponentes edifícios e apoiados por um claustro circundante…»

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Sobre o prazer de contar histórias
«Enquanto escrevo, atormentem-me grandes dúvidas. Será que posso mesmo contar tudo? Não seria melhor guardar segredo, tal como até agora fizeram os que souberam de tudo? Porém, não será o silêncio a mais cruel das mentiras? E não contribuirá o erro para o entendimento da verdade? Incapaz de alcançar o grau de conhecimento que, até ao verdadeiro cristão, se mantém oculto durante toda a vida e que se refugia sempre no testemunho da fé, pesei durante muito tempo os prós e os contras, até que o prazer de contar esta história foi mais forte - de contar esta história tal e qual a ouvi, e em circunstâncias assaz notáveis. Adoro conventos. Uma força inexplicável impele-me a visitar esses sítios recônditos, isolados do mundo exterior, que, verdade seja dita, se situam nos mais belos lugares da terra. Gosto de conventos porque neles o tempo parece parado, aprecio o cheiro mórbido que os seus vastos e ramificados edifícios exalam, uma mistura de livros antigos eternamente impregnados de humidade, corredores limpos com panos húmidos e incenso que se vai desvanecendo no ar. Mas gosto sobretudo dos jardins dos conventos; normalmente encontram-se escondidos dos olhares do público, não sei porquê, pois são eles que nos proporcionam a melhor visão do paraíso na terra.
Depois deste esclarecimento preliminar, quero então explicar porque me introduzi no paraíso de um convento beneditino nesse luminoso dia de Outono, um dia como só o céu meridional sabe criar. Conseguira afastar-me do grupo de turistas depois de uma visita guiada pela igreja, à cripta e à biblioteca, rendo-me esgueirado por uma portinhola lateral, atrás da qual, segundo o projecto de S. Bento, se encontraria presumivelmente o jardim conventual. O jardinzinho era extraordinariamente pequeno, muito mais pequeno do que seria de esperar num convento destas dimensões. Além disso, esta impressão de pequenez era acentuada pelo facto de o Sol, já baixo, dividir diagonalmente o quadrado paradisíaco do jardim numa metade banhada de luz e noutra mergulhada na sombra. Depois do frio angustiante que reinava no interior do convento, o calor do sol fez-me sentir bem. As flores do fim do Verão, as floxes e as pesadas flores das dálias, mostravam-se em todo o seu esplendor; íris, gladíolos e tremoceiros introduziam nessa sinfonia de cores o seu acento vertical; e todo o tipo de plantas aromáticas crescia como ervas daninhas, apertando-se em estreitos canteiros, separados uns dos outros por simples tábuas. Não, este jardim não tinha nada em comum com esses aglomerados botânicos, semelhantes a parques, que encontramos noutros conventos beneditinos, enquadrados pelas falanges de imponentes edifícios e apoiados por um claustro circundante, concorrendo assim com jardins profanos como os dos palácios de Versalhes ou de Schönbrunn. Este jardim conventual crescera aos poucos, fora posteriormente convertido em terraço na encosta sul do convento, sendo suportado por um muro alto em pedra vulcânica, material que abundava na região. Em direcção a sul, a vista era ampla, em dias claros podiam distinguir-se os Alpes no horizonte. De um dos lados do jardim, no sítio onde cresciam as ervas aromáticas, ouvia-se o murmúrio da água que jorrava de um tubo de ferro para dentro de uma pia de pedra. Ao lado, havia uma pequena casa degradada, que mais parecia uma barraca de madeira, na qual já vários mestres de obras tinham tentado a sua sorte de uma maneira bastante desajeitada.
Um telhado de cartão prensado servia para proteger da chuva, e um velho caixilho de janela, colocado perpendicularmente, era a única fonte de luz. No entanto, de toda esta construção emanava estranhamente uma certa alegria que, possivelmente, se devia ao facto de a construção fazer lembrar aquelas casas feitas de tábuas que, em crianças, costumamos construir nas férias. De repente, ouvi ume voz vinda da sombra: Como me encontraste, meu filho? Pus a mão em pala sobre os olhos, num gesto protector, de modo a poder orientar-me melhor na penumbra. Por um instante, fiquei paralisado com o que vi: um monge, sentado muito direito numa cadeira de rodas, com uma barba branca como a neve e digna de um profeta. Envergava um hábito acinzentado que se distinguia visivelmente do negro aristocrático dos hábitos dos monges beneditinos. Enquanto me mirava com um olhar perspicaz, rodava a sua cabeça de um lado para o outro, sem, no entanto, desviar o olhar do meu, como se fosse uma marioneta. Apesar de ter percebido muito bem a pergunta, formulei eu mesmo outra, para ganhar tempo: Que foi que disse? Como me encontraste, meu filho?, repetiu então o estranho monge com o mesmo movimento de cabeça; e eu pensei reconhecer uma expressão de vazio no seu olhar. Respondi deliberadamente de forma anódina, pois não sabia o que pensar deste estranho encontro e daquela não menos estranha pergunta: Não andava à sua procura. Estava de visita ao convento e só queria dar uma vista de olhos ao jardim, desculpe-me.
Dispus-me, então, a despedir-me com um aceno de cabeça, quando, de repente, o velho monge dobrou os braços que até aí tinham estado pousados e imóveis nos da cadeira de rodas, dando um impulso tão forte nas rodas que se precipitou na minha direcção como se tivesse sido catapultado. Parecia ter a força de um leão. Parou tão depressa como se tinha aproximado e, quando já estava à minha frente, reconheci por baixo dos cabelos e da barba desgrenhada um rosto magro e macilento, exposto agora aos raios de sol e muito mais jovem do que à primeira vista me parecera. O encontro começava a preocupar-me. Conheces o profeta Jeremias?, perguntou à queima-roupa. Eu hesitei um instante, pensei até simplesmente em fugir; mas o seu olhar penetrante e a estranha dignidade que dele emanava fizeram com que ficasse. Conheço, respondi. - Sim, conheço o profeta Jeremias, e o profeta Isaías, bem como Baruc, Ezequiel, Daniel, Amos, Tacarias e Malaquias. Esta era a ordem por que memorizara os profetas, desde os meus tempos num colégio interno de um convento. A minha resposta surpreendeu o monge, pareceu até alegrá-lo, pois de um momento para o outro desapareceu a rigidez do seu rosto e os seus movimentos perderam aquele jeito mecânico, de marioneta». In Philippe Vandenberg, A Conspiração Sistina, 1991, tradução de Ruth Correia, Quidnovi, Matosinhos, 2006, ISBN 978-989-628-060-4.

Cortesia de Quidnovi/JDACT