quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A Ala dos Namorados. António Campos Júnior. «Em frente da Sé, as torres castelãs, envoltas num manto de sombra como figuras gigantescas de alguma lenda, uma mulher nova, de cabelos esparsos, uma farrapagem de brocados a cingir-lhe o corpo, que era talvez belo…»

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Dor que enlouquece
«Fora calmo aquele dia de Junho de 1384. O sol sumira-se afogueado, globo enorme de ouro fulvo que deixara pelos cumes dos montes e sobre as águas dormentes do Tejo um crepúsculo agoirento, vermelho como a púrpura antiga dos autocratas e como o sangue forte da plebe. Em todas as torres de Lisboa bateram lugubremente as badaladas da alvorada. Parecia que nunca os sinos da cidade tinham tido uma voz assim dolente! Badaladas como trágicos soluços daquele bronze que parecia ter dentro em si a alma angustiosa da cidade. E não era deles afinal aquela tristeza imensa; era do coração de quem os ouvia. A voz dos sinos era a mesma dos dias jubilosos; no coração dos atormentados, dos famintos, dos que traziam consigo a dor e o luto, é que a repercussão mudara como se viesse timbrada pelas amarguras da Pátria e pelas tristezas de cada lar. Jesus!, soluçara uma velha a quem o marido e o filho tinham morrido, dias antes, numa sortida às portas de Santa Catarina, contra os castelhanos que cercavam Lisboa (o bloqueio terrestre da cidade pelas tropas de Castela começara em 9 de Fevereiro de 1384. O cerco cerrara-se em 27 de Abril, depois de ter chegado ao Tejo a primeira divisão de uma poderosa esquadra castelhana). Estão a dar aquelas badaladas como se fosse para lembrar os tantos que a morte levou e os muitos que hão de acabar, se o nosso Senhor não tiver dó desta pobre cidade e desta infortunada Nação! E para maior agouro e mais doloroso contraste, as sinetas de bordo das cinquenta e três naus e galés que El-rei de Castela tinha no Tejo também tocaram na alvorada, mas essas numas vibrações agudas, ligeiras, como se tivessem um timbre de riso de escárnio pela aflição da cidade. Ouviam-se bem na trágica melodia daquele crepúsculo. A armada potente de Castela estava atracada desde Santos até para lá de Cacilhas, muito próxima da praia, a cerrar estreitamente o cerco. Mas do acampamento castelhano, a rodear Lisboa das alturas de Santa Clara ao Monte da Graça e à Penha, das extremidades de Valverde (o valezito da actual Avenida da Liberdade), daqueles hortejos às lombas de Campolide e do monte de Santa Catarina às praias de Santos; dali vinham ainda mais opressoras repercussões naquele anoitecer de Junho. Vinham do estridor arrogante das trombetas no soberbo alarde das Trindades. Estão a uivar os lobos de Castela! Má peste os ponha em fuga!, comentara um besteiro (soldado que tem a besta como arma, estando na mesma categoria bélica que os arqueiros ou archeiros) de cabelos grisalhos. Já pela noite dentro, as procissões de penitência cruzavam-se nas ruas, gemendo o seu miserere, e as igrejas atulhavam-se de gente angustiada, que fazia preces pela boa fortuna da cidade. Para que Deus protegesse o jovem Nuno Álvares Pereira, já vencedor dos castelhanos na batalha dos Atoleiros, e para que a nossa Senhora trouxesse rapidamente e a salvamento a esquadra que esperavam do Porto com o socorro de que tanto carecia a capital.
Depois passaram silenciosas, num passo pesado e lento, de piques e bestas ao ombro, as quadrilhas de peonagem (era todo o soldado raso de posição militar mais baixa, apelidado de peão) de reforço para as setenta e sete torres e trinta e oito portas que tinham as muralhas de Lisboa e para as trincheiras de estacaria dobrada, que reforçavam as defesas até à praia de Santos, e seguiam ao longo da Ribeira e dos Fornos da Cal até ao mosteiro de Santa Clara. Para os lados das Portas de Santa Catarina e da Torre de Álvaro Pais (na moderna rua de S. Roque), trotava um grupo de cavaleiros, de bacinetes emplumados, cotas e braçais. Iam para onde o perigo era maior e mais frequentes as escaramuças com os sitiantes. Depois o soluçar das preces emudeceu, as velas dos altares apagaram-se, as grandes portas das igrejas cerraram-se. Esmoreciam pelas esquinas e sobre as portas de casas abastadas os lampiões e as candeias dos nichos, à míngua de umas gotas de azeite, porque até nisto se manifestava a miséria daquela encantadora Lisboa, à qual os mouros tinham chamado a Sultana do Mar Azul do Ocidente. Foi correndo a noite e a cidade parecia adormecida num sono de pesadelos. Mas nem toda ela adormecera. Nas muralhas velavam as atalaias, e dos lados da Ribeira vinha, a espaços, um rumor brando de vozes. Mas nos lares que a morte enlutara de lágrimas de dor, nos castelos miseráveis, quantos esquálidos havia, que não conseguiam dormir por causa da sua horrorosa tortura de famintos?
No recanto de uma travessa, um grupo de esfarrapados esquartejava sofregamente uma mula escanzelada para o seu banquete daquela noite. Havia dois dias que não traziam na sacola nem uma côdea bolorenta de esmola, uma côdea daquele pão miserável que então se fazia na cidade com o bagaço da azeitona, as raízes das ervas e as malvas dos quintalejos abandonados. No terreiro, onde ainda um mês antes se vendiam uns restos de trigo, bandos de crianças semi-nuas, estonteadas de sono e roídas de fome, andavam a arranhar o chão para ver se a terra tinha escondida em si a fartura de alguns bagos de trigo. Eram mais bem sucedidos que as pobres crianças, os cães sem dono, a focinhar nas montureiras, que trescalavam podridões de cadáveres. Em frente da Sé, as torres castelãs, envoltas num manto de sombra como figuras gigantescas de alguma lenda, uma mulher nova, de cabelos esparsos, uma farrapagem de brocados a cingir-lhe o corpo, que era talvez belo, parara arquejante, aconchegando muito aos seios um vulto pequenino de criança, num choro convulsivo e débil.  Como tu choras, amor da minha alma! Cheia de fome! Eu sei! Eu sei! Filha, dava-te o meu sangue, e não posso matar-te a fome!  Murmurara-lhe isto num estrangulamento de soluços como se a pequenina a pudesse compreender, e apertava-a mais contra o peito como se quisesse que do seu seio ressequido aquela boquita lhe pudesse beber o sangue. Lavada em lágrimas! Têm mais sorte os que morrem! Que tamanha misericórdia seria se a nossa Senhora nos levasse a ambas para si! E a pequenita num choro cada vez mais convulso, mais rouco, mais dolorido. Num relancear dos seus olhos de alucinada, turvos de lágrimas, a desventurada mulher deu com um painel da Senhora Mãe de Deus, que o padre Cabido mandara erguer por cima da porta do templo, desde que as misérias do cerco tinham posto a cidade em maiores desalentos». In António Campos Júnior, A Ala dos Namorados, 1905, Luso Livros, Uma nova forma de ler, Formato digital, 2013.

Cortesia de LusoLivros/JDACT