quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «… jornais cor de cinza, baços, uma rajada fez bater a porta que dá para a rua, lá no fundo da escada, o besouro zumbiu, não é ninguém, apenas o temporal que recrudesce, desta noite não virá mais nada que se aproveite, chuva, vendaval em terra e no mar, solidão»

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«Ninguém entende ninguém. Tudo é interstício e acaso, mas está tudo certo». In Fernando Pessoa

«(…) O criado veio servi-los, sóbrio mas familiar de modos, depois afastou-se, agora a sala está silenciosa, nem as crianças levantam as vozes, estranho caso, Ricardo Reis não se lembra de as ter ouvido falar, ou são mudas, ou têm os beiços colados, presos por agrafes invisíveis, absurda lembrança, se estão comendo. A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão direita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo. Então Ricardo Reis, surpreendido pela sua própria descoberta, repara que desde o princípio aquela mão estivera imóvel, recorda-se de que só a mão direita desdobrara o guardanapo, e agora agarra a esquerda e vai pousá-la sobre a mesa, com muito cuidado, cristal fragilíssimo, e ali a deixa ficar, ao lado do prato, assistindo à refeição, os longos dedos estendidos, pálidos, ausentes. Ricardo Reis sente um arrepio, é ele quem o sente, ninguém por si o está sentindo, por fora e por dentro da pele se arrepia, e olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há-de ir se a não levarem, aqui a apanhar sol, aqui a ouvir a conversa, aqui para que te veja aquele senhor doutor que veio do Brasil, mãozinha duas vezes esquerda, por estar desse lado e ser canhota, inábil, inerte, mão morta mão morta que não irás bater àquela porta. Ricardo Reis observa que os pratos da rapariga vêm já arranjados da copa, limpo de espinhas o peixe, cortada a carne, descascada e aberta a fruta, é patente que filha e pai são hóspedes conhecidos, costumados na casa, talvez vivam mesmo no hotel. Chegou ao fim da refeição, ainda se demora um pouco, a dar tempo, que tempo e para quê, enfim levantou-se, afasta a cadeira, e o rumor do arrastamento, acaso excessivo, fez voltar-se o rosto da rapariga, de frente tem mais que os vinte anos que antes parecera, mas logo o perfil a restitui à adolescência, o pescoço alto e frágil, o queixo fino, toda a linha instável do corpo, insegura, inacabada. Ricardo Reis sai da sala de jantar, aproxima-se da porta dos monogramas, aí tem de trocar vénias com o homem gordo que também ia saindo, Vossa excelência primeiro. Ora essa, por quem é, saiu o gordo, Muito obrigado a vossa excelência, notável maneira esta de dizer, Por quem é, se tomássemos todas as palavras à letra, passaria primeiro Ricardo Reis, porque é inúmeros, segundo o seu próprio modo de entender-se.
O gerente Salvador estende já a chave do duzentos e um, faz menção de a entregar solícito, porém retrai subtilmente o gesto, talvez o hóspede queira partir à descoberta da Lisboa nocturna e dos seus prazeres secretos, depois de tantos anos no Brasil e tantos dias de travessia oceânica, ainda que a noite invernosa mais faça apetecer o sossego da sala de estar, aqui ao lado, com as suas profundas e altas poltronas de couro, o seu lustre central, precioso de pingentes, o grande espelho em que cabe toda a sala, que nele se duplica, em uma outra dimensão que não é o simples reflexo das comuns e sabidas dimensões que com ele se confrontam, largura, comprimento, altura, porque não estão lá uma por uma, identificáveis, mas sim fundidas numa dimensão única, como fantasma inapreensível de um plano simultaneamente remoto e próximo, se em tal explicação não há uma contradição que a consciência só por preguiça desdenha, aqui se está contemplando Ricardo Reis no fundo do espelho, um dos inúmeros que é, mas todos fatigados, Vou para cima, estou cansado da viagem, foram duas semanas de mau tempo, se houvesse por aí uns jornais de hoje, questão de me pôr em dia com a pátria enquanto não adormeço, Aqui os tem, senhor doutor, e neste momento apareceram a rapariga da mão paralisada e o pai, passaram para a sala de estar, ele à frente, ela atrás, distantes um passo, a chave já estava na mão de Ricardo Reis, e os jornais cor de cinza, baços, uma rajada fez bater a porta que dá para a rua, lá no fundo da escada, o besouro zumbiu, não é ninguém, apenas o temporal que recrudesce, desta noite não virá mais nada que se aproveite, chuva, vendaval em terra e no mar, solidão.
O sofá do quarto é confortável, as molas, de tantos corpos que nelas se sentaram, humanizaram-se, fazem um recôncavo suave, e a luz do candeeiro que está sobre a secretária ilumina de bom ângulo o jornal, nem parece isto um hotel, é como estar em casa, no seio da família, do lar que não tenho, se o terei, são estas as notícias da minha terra natal, e dizem, O chefe do Estado inaugurou a exposição de homenagem a Mousinho de Albuquerque na Agência Geral das Colónias, não se podem dispensar as imperiais comemorações nem esquecer as figuras imperiais, Há grandes receios na Golegã, não me lembro onde fica, ah Ribatejo, se as cheias destruírem o dique dos Vinte, nome muito curioso, donde lhe virá, veremos repetida a catástrofe de mil oitocentos e noventa e cinco, noventa e cinco, tinha eu oito anos, é natural não me lembrar, A mais alta mulher do mundo chama-se Elsa Droyon e tem dois metros e cinquenta centímetros de altura, a esta não a cobriria a cheia, e a rapariga, como se chamará, aquela mão paralisada, mole, foi doença, foi acidente». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT