sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Filosofia. História da Loucura na Idade Clássica. Michel Foucault. «… são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso; ‘é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado’»

Cortesia de wikipedia

Stultifera navis
«Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. Às margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se como que grandes praias que esse mal deixou de assombrar, mas que também deixou estéreis e inabitáveis durante longo tempo. Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desumano. Do século XIV ao XVII, vão esperar e solicitar, através de estranhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar do medo, mágicas renovadas de purificação e exclusão. A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a haver 19.000 delas em toda a cristandade. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri; e também Charenton. Os dois maiores encontravam-se na periferia imediata de Paris: Saint-Germain e Saint-Lazare; tornaremos a encontrar seus nomes na história de um outro mal. É que a partir do século XV, o vazio se estabelece por toda a parte; a partir do século seguinte, Saint-Germain torna-se uma casa de correcção para os jovens; e antes de São Vicente, em Saint-Lazare existe apenas um único leproso, o senhor Langlois, prático leigo da corte. O leprosário de Nancy, que figurou entre os maiores da Europa, mantém apenas quatro doentes sob a regência de Maria de Médicis. Segundo as Memórias de Catel, teriam existido 29 hospitais em Toulouse por volta do fim da época medieval: 7 eram leprosários, mas no começo do século XVII apenas 3 são mencionados: Saint-Cyprien, Arnaud-Bernard e Saint-Michel. As pessoas gostam de celebrar o desaparecimento da lepra: em 1635, os habitantes de Reims fazem uma procissão solene para agradecer a Deus por ter libertado a cidade desse flagelo. Nessa época, há já um século o poder real tinha assumido o controle e a reorganização dessa imensa fortuna que representavam os bens fundiários dos leprosários; através de um ordenamento de 19 de Dezembro de 1543, Francisco I tinha mandado proceder a seu recenseamento e inventário a fim de reparar a grande desordem que então havia nas gafarias; por sua vez, Henrique IV prescreve, num édito de 1606, uma revisão das contas e destina as quantias que resultariam desse exame ao tratamento dos gentis-homens pobres e dos soldados estropiados. O mesmo pedido de controlo é feito em 24 de Outubro de 1612, mas pensa-se agora em utilizar as rendas abusivas na alimentação dos pobres.
De facto, a questão dos leprosários na França só foi regulamentada ao final do século XVII, e a importância económica do problema suscitou mais de um conflito. Não havia ainda, em 1677, 44 leprosários apenas na província do Dauphiné? A 20 de Fevereiro de 1672, Luís XIV atribui às ordens de Saint-Lazare e do Mont-Carmel os bens de todas as ordens hospitalares e militares, encarregando-as de administrar os leprosários do reino. Cerca de vinte anos mais tarde, o édito de 1672 é revogado, e através de uma série de medidas escalonadas entre Março de 1693 e Julho de 1695, os bens das gafarias passam aos outros hospitais e estabelecimentos de assistência. Os poucos leprosos dispersos ao acaso pelas 1.200 casas ainda existentes serão agrupados em Saint-Mesmin, perto de Orléans. Essas prescrições são aplicadas primeiro em Paris, onde o Parlamento transfere as rendas em questão para os estabelecimentos do hospital geral; o exemplo é imitado pelas jurisdições provinciais: Toulouse destina os bens de seus leprosários ao hospital dos Incuráveis (1696); os de Beaulieu, na Normandia, passam para o Hôtel-Dieu (hospital principal) de Caen; os de Voley são atribuídos ao hospital de Saint-Foy. Sozinho, com Saint-Mesmin, o recinto dos Ganets perto de Bordeaux permanecerá como testemunha.
Para um milhão e meio de habitantes no século XII, Inglaterra e Escócia tinham aberto, apenas as duas, 220 leprosários. Mas já no século XIV o vazio começa a se implantar: no momento em que Ricardo III ordena uma perícia sobre o hospital de Ripon (em 1342) ali não há mais leprosos, atribuindo ele aos pobres os bens da fundação. O arcebispo Puisel fundara ao final do século XII um hospital no qual, em 1434, apenas dois lugares tinham sido reservados aos leprosos, caso se pudesse encontrá-los. Em 1348, o grande leprosário de Saint-Alban contém apenas 3 doentes; o hospital de Romenall, em Kent, é abandonado vinte e quatro anos mais tarde, por falta de leprosos. Em Chatham, a gafaria de São Bartolomeu, estabelecida em 1078, tinha sido uma das mais importantes da Inglaterra: sob o reinado de Elizabeth, ali são mantidas apenas duas pessoas, e ela é finalmente suprimida em 1627. A mesma regressão da lepra se regista na Alemanha, talvez um pouco mais lentamente; mesma conversão, também, dos leprosários, apressada como na Inglaterra pela Reforma, que confia à administração das cidades as obras de caridade e os estabelecimentos hospitalares. Foi o que ocorreu em Leipzig, Munique, Hamburgo. Em 1542, os bens dos leprosários de Schleswig-Holstein são transferidos para os hospitais. Em Stuttgart, o relatório de um magistrado indica em 1589 que há já 50 anos não há mais leprosos na casa que lhes é destinada. Em Lipplingen, o leprosário é logo povoado por incuráveis e loucos.
Estranho desaparecimento, que sem dúvida não foi o efeito, longamente procurado, de obscuras práticas médicas, mas sim o resultado espontâneo dessa segregação e a consequência, também, após o fim das Cruzadas, da ruptura com os focos orientais de infecção. A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa. Aquilo que sem dúvida vai permanecer por muito mais tempo que a lepra, e que se manterá ainda numa época em que, há anos, os leprosários estavam vazios, são os valores e as imagens que tinham aderido à personagem do leproso; é o sentido dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado». In Michel Foucault, História da Loucura, Filosofia, Éditions Gallimard, 1972, Editora Perspectiva, Colecção Estudos, tradução de José Netto, São Paulo, Brasil, 1978.

Cortesia de EPerspectiva/JDACT