sábado, 13 de dezembro de 2014

Figuração da personagem. A ficção meta-historiográfica de José Saramago. Carlos Reis. «Herculano dizia, em 1840, que ‘o noveleiro [entenda-se: novelista] pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive’»

Cortesia de wikipedia

«(…) Outra questão seria a de saber até que ponto as telas de Santa-Bárbara, cada uma por si ou todas em conjunto, assumem alguma coisa da narratividade de que o romance de Saramago naturalmente é tributário. O que bem se compreende, não só por força da basilar natureza modal do romance, mas também como efeito derivado daquela outra narratividade que é própria de muitos textos historiográficos ou similares (por exemplo, as biografias), designadamente aqueles que o escritor terá lido para escrever o seu romance. Se hoje a problematização da narratividade se alarga a outros âmbito modais (a poesia) e até a práticas artísticas não-verbais (a música e a pintura), com mais razão ela pode colocar-se quando falamos da pintura como leitura do romance. Esta é, contudo, uma questão que ultrapassa os limites desta análise. Que a literatura constitui um fundamental veículo de conhecimento de épocas, de costumes, de figuras e de acontecimentos é bem sabido, como também se sabe que ele é de natureza diferente daquele que a reflexão científica busca, incluindo-se aqui o conhecimento histórico facultado pela historiografia. Porque o conhecimento que a literatura permite modeliza-se em função de factores normalmente alheios ao discurso científico: a configuração de mundos ficcionais, sem obrigação de verificação empírica ou de validação documental; a propensão para a elaboração simbólica, metafórica ou alegórica; a vocação para cultivar, na linguagem verbal que em primeira instância suporta o discurso literário, procedimentos estilísticos de muito variada feição.
Quando a literatura se faz romance, o conhecimento que dela decorre tende, em todo o caso, a homologar-se (como é óbvio, a homologia é coisa diversa da analogia) ao da historiografia. Por isso, o romancista e historiador Alexandre Herculano dizia, em 1840, que o noveleiro [entenda-se: novelista] pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive; e acrescentava: Essa [a novela] é a história íntima dos homens que já não são: esta [a história] é a novela do passado. O raciocínio de simetria que Herculano explana inviabiliza-se quando, muito depois do idealismo romântico que o determinou e em tempo de pulsões pós-modernistas, o romance, em provocatória radicalização do seu poder evocativo, fomenta visões alternativas da História e desafia o conhecimento que dela temos. Por isso, faz sentido dizer que a ficção histórica pós-modernista constrói e desenvolve dispositivos de contraditória conjectura e autorreflexividade, de modo a questionar a natureza do conhecimento histórico, tanto de um ponto de vista hermenêutico como de um ponto de vista político. Conforme é notório, uma parte importante da ficção de José Saramago constitui uma activa interpelação da História, através da palavra do romance. Desde Manual de Pintura e Caligrafia (1977) e Levantado do Chão (1980) que assim aconteceu, então ainda de forma moderada. Mas é o romance Memorial do Convento que constitui, no conjunto da produção saramaguiana, uma verdadeira pedra angular, em vários aspectos e também naquele a que me reporto: tanto do ponto de vista temático, como no que toca às estratégias narrativas nele instauradas, como ainda pela peculiaridade do seu estilo, Memorial do Convento revelou-se um momento de viragem técnica e de refinamento ideológico, reafirmando a vocação para aquela interpelação da História que ficou referida e que foi retomada, em termos diferentes, na História do Cerco de Lisboa (1989).
De forma necessariamente sintética e antes de voltar a figuras históricas presentes no Memorial do Convento, trato de recordar que um traço evidente da ficção de José Saramago é, por certo, o impulso para operar uma revisão da História, em função de um ponto de vista ideológico que subverte imagens e heróis aparentemente estabilizados pela historiografia oficial». In Carlos Reis, Figuração da personagem, A ficção meta-historiográfica de José Saramago, Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, Academia, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT