domingo, 21 de dezembro de 2014

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «São actos que exemplificam a vontade de me portar bem comigo mesmo, muito meritoriamente, porque à minha volta não costuma haver habitualmente esse círculo protector familiar que, observo, envolve os homens maduros…»

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«(…) Chegaria rapidamente a San Simón o implacável anoitecer de Dezembro e o meu observatório seria inútil, sem outro remédio senão ir até ao cais à espera dos últimos transbordos do dia, decido, assim, antecipar o breve passeio permitido pelas ilhotas unidas no seu canto da baía de Vigo, apenas um pretexto terrestre que tinha cumprido funções de centro religioso, templário, disputado por reis e bispos, conventual e sanitário, prolongado lazareto, caserna, prisão de vermelhos durante e depois da guerra civil de 1936, albergue dentro da rede de Albergues Nacionais do Movimento Nacional Sindicalista, lar para órfãos de marinheiros, ruína e pré-ruína restaurada pela Xunta da Galiza para a converter em centro cultural, convocada uma vez mais a cultura para tapar os horrores da vida e da história e transformar-se na sua metáfora. - Você insiste em que a sede do encontro em sua homenagem seja San Simón, don Júlio? Talvez em La Toja ou na Universidade de Santiago fosse tudo mais amplo. - San Simón, se está em condições. - Esperemos que esteja.
Eu sabia da existência do projecto de remodelação de San Simón como consequência de uma conferência no Club Faro de Vigo e a sua indutora, Marisa Real, tinha-me facilitado uma visita às ilhas na companhia de dois arquitectos, Pilar Rojo, da Consellería de Cultura, e Pepe Pichel. Fiquei encantado com a assessoria dos meus acompanhantes e pelo lugar, sobretudo por arqueologias emocionais tão diversas como desafortunadas, sepultadas pelo tempo, agora ressuscitadas ou restauradas por uma equipa técnica dirigida pelo arquitecto César Portela, e quando tive de escolher o cenário da minha homenagem de aposentação lembrei-me que a conotação cul-de-sac das ilhas, tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes da terra chamada firme, as convertia num palco de despedida de um especialista em saberes tão arqueológicos como os medievais e quase contemporâneo da arqueologia carcerária do lugar, segundo me tinha informado na monografia de José António Orge Quinteiro, inventário de horrores da repressão franquista. O conselleiro de Cultura do governo autónomo, o senhor Perez Varela, forçou o andamento da restauração e a minha homenagem terá um marco melhor ou pior acabado, mas estará pronto nas ilhas unidas pela ponte tão sóbria como bela e rítmica, de uma eficácia de engenharia militar bordado o granito por vegetações como crostas, pátinas do tempo neste caso criadas pelas humidades do mar e das que chegam com o vento através da ria. Mas antes de sair tenho de verificar a minha tensão e o índice de açúcar no sangue e tiro o meu equipamento provisório para verificar que estou com 11,7 e 7,5, uma excelente tensão, e, pelo contrário, apesar das horas que já passaram desde o almoço tenho 180 de índice de açúcar, nada alarmante ainda que limite com o heterodoxo. O ritual das verificações da minha tensão arterial e as idas e vindas do que não tem um nome determinado mas que poderá ser considerado uma sombra de diabetes, fazem parte dos sublinhados do dia; e puxar a manga do meu punho esquerdo para receber a peça da máquina Omron RX Matusaka-Japão ou procurar o dedo mais irrigado para receber a picadela do Glucometer Elite são prazeres litúrgicos que substituíram a quase proibição do álcool, que não respeito, e do tabaco, que, de facto, respeito. São actos que exemplificam a vontade de me portar bem comigo mesmo, muito meritoriamente, porque à minha volta não costuma haver habitualmente esse círculo protector familiar que, observo, envolve os homens maduros ou os velhos ameaçados por doenças crónicas e deteriorantes. A minha mulher, Madrona, cumpriu perfeitamente um papel inicial de indutora a estas rotinas sanitárias, mas depois, como em tudo, respeitou a minha liberdade de compromisso e decisão, tanto na matéria arturiana como na prevenção da diabetes e da hipertensão.
No vestíbulo do pequeno hotel Stella Maris aguardam-me os cartazes que anunciam o acontecimento que começará depois de amanhã:
  • Homenagem ao professor emérito Jútio Matasanz das Reais Academias da Historia e da Língua. Simposium: A regeneração de um mito arturiano Erec e Enide. Com o patrocínio da Xunta da Galiza, da Real Academia da Língua Espanhola, Real Academia da Historia, Universidade de Barcelona, Yale University, Universidades de Vigo e de Santiago de Compostela e da Societe Arturienne.
Toda esta informação está colocada sobre um fundo que reproduz o perímetro da gravura de Dürer O Cavaleiro, o Diabo e a Morte. Não tive qualquer intervenção na escolha do motivo gráfico e se me tivessem consultado eu teria proposto uma outra alternativa, sobretudo nestes tempos em que os assuntos arturianos se estudam na sua relação com o miniaturismo a que deu lugar, miniaturismo tão presente na formidável edição dos manuscritos de Chrétien de Troyes a cargo de Bushy Kates. A gravura de Dürer desagrada-me porque fiquei desencantado com ela numa determinada altura. Tinha-a visto tantas vezes reproduzida e tantas vezes a tinha imaginado, apesar da sua condição de gravura, como uma impressionante e quantitativamente importante peça, que quando pude ver o original pareceu-me uma minúcia que atraiçoava a transcendência do assunto, como se fosse a própria prova de que maniére e matiére se podem dissociar. Talvez me desagrade também que se teria seleccionado a impossível dialéctica entre cavaleiro e a morte para a sessão final da minha própria carreira universitária, da minha própria vida e, no fim de contas, eu mesmo tenha contribuído para a construção do meu imaginário: um cavaleiro do trabalho intelectual bem executado que invade os últimos anos que lhe atribui o código genético como os cavaleiros medievais invadiam os bosques aparentemente proibidos para os desvelar». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT