domingo, 28 de dezembro de 2014

Efeito borboleta. Ou a Vida como Caos Causalidade e Casualidade em Outrora Agora. Edimara Sartori. «Os versos retirados do poema “Pobre velha música!”, de Fernando Pessoa, servem de epígrafe e de motivo ao romance ‘Outrora Agora’: Com que ânsia tão raiva / quero aquele outrora! / E eu era feliz? Não sei: / fui-o outrora agora»

Cortesia de wikipedia

Resumo:
«Este estudo constitui uma análise do romance Outrora Agora, de Augusto Abelaira, observando, por um lado, a imprevisibilidade que condiciona as relações pessoais e, por outro, uma certa previsibilidade que norteia as relações político-económicas. A nossa análise busca sustentação teórica nos estudos de Bauman acerca da modernidade líquida, fazendo uma breve alusão à teoria dos sistemas dinâmicos, a fim de ilustrar os movimentos caóticos que determinam o comportamento e as relações das personagen».

«A maior parte das histórias nunca chega a acontecer, às vezes por pequenos nadas de que nem temos consciência. Se no dia tantos de tal, em vez de ficar em casa, saísse... Já pensei em coleccionar as histórias por acontecer, registá-las, as cem mil histórias que não chegaram a acontecer. Pelo menos as que poderiam ter acontecido. Que posso imaginar e tenho razões para imaginar. Inesperadamente doutoral: não somos unicamente o que fizemos, somos também o que não fizemos e poderíamos ter feito. Mais ainda o que poderíamos ter feito, o que fizemos é pouquíssimo em relação ao que poderíamos ter feito e, se calhar, nem depende de nós. Estas palavras também ele as poderia ter dito, já as terá dito até. Com um novo parágrafo: também o que não fazemos não depende de nós». In Augusto Abelaira, Outrora Agora.

«Os versos retirados do poema Pobre velha música!, de Fernando Pessoa, servem de epígrafe e de motivo ao romance Outrora Agora: Com que ânsia tão raiva / quero aquele outrora! / E eu era feliz? Não sei: / fui-o outrora agora. O poema, que alude ao vago e à incerteza sugeridos pela recordação da velha música, que comove, embora o sujeito lírico não saiba porque agrado a melodia lhe enche os olhos de lágrimas, nem esteja certo de tê-la ouvido na infância que é, aliás, relembrada pela própria música, é marcado sobretudo pelo paradoxo criado pela sobreposição de tempos. A aproximação dos advérbios outrora, indicando um tempo passado, e agora, situando o presente, tenta captar o ápice de um momento de felicidade, que é, entretanto, indeterminado. O estado emocional do sujeito lírico emana angústia, fúria e desespero (ânsia tão raiva), querendo recuperar aquele outrora, tempo em que talvez tenha sido feliz. No entanto, a sua indefinição sentimental deixa transparecer que a felicidade pode existir também num momento indefinido do presente. Como observa Lélia Duarte, surge, assim: um desejo contraditório que se afirma e se nega, sendo ao mesmo tempo impulso de distanciamento e de aproximação, (im)provável felicidade daquele outrora que se deseja, numa mistura de tempos que esvazia a suposta felicidade do passado e também a que poderia existir no presente; fui-o outrora agora (2006).
A incerteza acerca da própria felicidade reside na simultaneidade entre um momento do passado e o presente, sugerindo um tempo irreal, possível somente no espaço da linguagem. A felicidade estaria então, no poema, apenas na provável sobreposição de tempos, operada nesse lugar vazio em que se joga com a linguagem e em que parece subsistir apenas a palavra literária, que é fundadora de sua própria realidade (Duarte, 2006). O romance de Abelaira, cujo título é uma apropriação do verso de Fernando Pessoa, também apresenta um enredo que joga com os liames do tempo, recuperando pela memória fragmentos de um passado, inventando outros, que, por sua vez, são até certo ponto (re)vividos no presente. Com esse jogo temporal confunde-se o próprio acto de escrever, é linguagem, como no poema, pois somente pela escrita é possível reviver o passado no tempo presente do sujeito. Podemos dizer que a intriga de Outrora Agora, da mesma forma que o poema de Pessoa, busca recuperar um intervalo de tempo que não pode existir senão no espaço da linguagem. Isso é representado pelo confronto de duas gerações, a de Jerónimo e Cristina versus a de Filomena e Cecília, separadas pelo movimento cultural de 1968, que abalou o comportamento e os princípios ético-morais principalmente nas sociedades ocidentais. A personagem-narradora avalia sua condição: Entre o amor possível (ou a amizade amorosa, ainda não sabe de que serão capazes, emotivamente, esses seus sessenta e tal anos) e o risco de perturbar o sossego de uma vida estabilizada, embora à custa de prudente resignação. De um lado, a velhice (a maturidade?), a mais ou menos serena expectativa da morte; do outro, a juventude renovada (pouco importa se ilusória), o regresso, através do amor (lugar comum literário) aos verdes anos. Sim ou não, vale a pena recomeçar, aceitar um último desafio? O último desafio e morrer, conclui, com a falsa ironia do céptico que procura mascarar-se no palco da intimidade. Tristão e Isolda, amor e morte (Outrora Agora).
Sempre acompanhado do olhar irónico, Jerónimo, que afirma desconhecer as suas capacidades emotivas, (re)velando assim que a sua virilidade já não é mais a mesma, pois refere-se somente aos sentimentos, vê-se obrigado a optar entre a estabilidade da sua vida e o desafio, o desconhecido. Podemos entrever mais uma vez a ironia quando o tradutor assume a sua velhice, mas duvida da sua maturidade, que é grafada entre parêntesis e de forma interrogativa, o que reforça a sua condição de desassossego no tempo presente do relato. O olhar crítico que o narrador-protagonista lança sobre si mesmo e à situação na qual se encontra refere-se tanto à tentativa de resgate do relacionamento com Cristina como à aventura que pode vir a ter com Filomena ou Cecília, e nas duas situações o amor equivale ao retorno da juventude, o prazer e depois a morte. No primeiro caso, Jerónimo reviverá a história da sua geração, com desejos reprimidos, atitudes e gestos comedidos, a velhice, a maturidade; no segundo caso, poderá viver a liberdade moral e comportamental, a juventude renovada». In Edimara Luciana Sartori, Efeito borboleta, Ou a Vida como Caos Causalidade e Casualidade em ‘Outrora Agora’ (Augusto Abelaira), Tese de Doutoramento em Literatura Portuguesa, Imagens líquidas na obra de Augusto Abelaira: sujeito e história na pós-modernidade, CEFET-RS, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.

Cortesia da UFRJaneiro/JDACT