quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Contos Proibidos. Rui Mateus. «Em Abril de 1974, a social-democracia europeia entra na sua fase de apogeu. Partidos filiados na Internacional Socialista, a que o PS português também pertence, estão então no governo na Alemanha Federal, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Grã-Bretanha, Holanda, Israel, Luxemburgo, Noruega e Suécia»

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Do triunfo da política ao estado dos juízes. Memórias de um partido desconhecido
«(…) Tentar explicar esses fenómenos de um passado recente, para compreender o presente, é um dos objectivos deste livro. Mas, como não poderia deixar de ser, escrever sobre o PS durante este período sem falar dos seus principais protagonistas tomaria impossível alcançar essa meta. Entre eles destacam-se duas personalidades distintas e a relação de amor e ódio que, em grande parte, determinaria o actual PS: Mário Soares e Francisco Salgado Zenha. O primeiro deixaria marcas profundas que continuarão a caracterizar o PS por muito tempo. De Salgado Zenha este partido herdaria a consciência moral que ainda lhe resta. Mário Soares seria eleito Presidente da República e Salgado Zenha abandonaria o partido, incompatibilizado com o seu velho amigo. Durante algum tempo, o PS iria ser um barco à deriva. Recuperaria eleitoralmente, contudo, com o seu actual líder, António Guterres. Mas, curiosamente, essa recuperação só aconteceria quando este fiel discípulo de Zenha se converteu ao soarismo. Por isso mesmo, esta interessante simbiose das personalidades daqueles dois principais personagens será agora examinada à lupa no novo PS, para ver se ele segue o caminho da consciência moral do seu velho protector, ou o caminho do absolutismo monárquico e das facilidades do seu favorito ex-inimigo. Para já, é evidente que o actual secretário-geral do PS, já em 1976 responsável com Edmundo Pedro, Soares Louro e Santos Ferreira pela campanha eleitoral do PS, conhece bem as dependências internacionais do seu partido e até, à semelhança do seu antecessor, trata-se por tu com pelo menos seis primeiros-ministros europeus. Vamos ver para crer, como diz o ditado, mas, pelos primeiros indícios, temo que, do mesmo modo que Soares meteria o socialismo na gaveta, Guterres venha a meter a consciência moral do PS no congelador. O que é um mau sinal para a democracia. Que não terá futuro se o passado não estiver esclarecido e o futuro continuar a depender de bodes expiatórios. O meu livro, ajudará a compreender como o triunfo de alguns se faria à custa do sacrifício dê outros. O estado dos juízes está atento ao passado dos actuais políticos e não hesitará, no momento oportuno, em colaborar para a sua decomposição.
Eu entrei para a política quase por acaso. Aderi nos anos 60 à minúscula Acção Socialista Portuguesa por acreditar que, pela via do socialismo democrático e através de um sistema pluripartidário, Portugal viria a ser um país igual ou melhor que aquele onde vivia exilado, a Suécia, e que era então considerado, acertadamente, a sociedade mais justa e mais evoluída do planeta. Não o socialismo utópico, igualitário, de partido único que transforma os cidadãos em funcionários do estado. O socialismo onde os partidos se combatem no campo das ideias e onde os interesses e bem-estar dos cidadãos estão sempre em primeiro lugar. Onde os partidos políticos são a espinha dorsal do sistema e os instrumentos para a sua modificação democrática e não o instrumento de promoção pessoal dos seus dirigentes. Mas, infelizmente, e daí a outra razão de ser deste meu livro, Portugal parece estar a perder essa importante batalha da democracia. Isso atestam o crescente branqueamento da História e falta de transparência das instituições. A Europa, berço da amálgama de culturas e conflitos que deram origem ao que é hoje vulgarmente apelidado de civilização ocidental, nunca produziu um modelo perfeito de democracia que garanta aos seus cidadãos a igualdade de acesso à educação, ao trabalho, à saúde e à justiça. Entretanto, alguns países, sobretudo a norte, conseguiram ao longo dos anos conquistas importantes naquelas áreas, com base numa considerável evolução do conceito de respeito pelos direitos humanos, dos direitos dos animais e da natureza. A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte, o lançamento dos alicerces da União Europeia não viabilizariam, contudo, o acesso dos países do Sul ao fenómeno de desenvolvimento dos seus vizinhos mais a norte e, até meados dos anos 70, a Europa viveu num clima de completa desunião. Entre democracias mais ou menos formais no Norte e Centro, ditaduras medíocres e subservientes de inspiração cristã na Península Ibérica, uma ditadura militar com reminiscências pan-arábicas na Grécia e uma imensidão de regimes comunistas totalitários e despóticos, proclamados pela via revolucionária em nome da classe operária, a Leste.
O início da luta dos Movimentos de Libertação contra o colonialismo português na Guiné, em Moçambique e em Angola, empurrados pela miopia e desinteresse ocidental para os braços da União Soviética, dariam lugar ao chamado Movimento dos Capitães que a 25 de Abril derrubaria, para surpresa de todos, dentro e fora de Portugal, a ditadura iniciada com o Estado Novo, em 1933, por António Oliveira Salazar. Este levantamento pacífico e sem objectivos políticos claros, provocado quer por razões de natureza sindical, quer pela derrota psicológica dos militares portugueses nas guerras coloniais, viria a influenciar a evolução política mundial deste fim de século. Durante mais de uma década, até à entrada de Portugal como membro de pleno direito na Comunidade Europeia, em 1986, o nosso pequeno e subdesenvolvido país, até então quase esquecido do seu contexto europeu, mobilizaria de forma inédita todas as atenções mundiais com a sua Revolução dos Cravos e teria reflexos profundos na Europa e no Mundo. A nossa revolução seria quase instantaneamente adoptada por praticamente todas as forças democráticas internacionais, tendo-se democratas cristãos, liberais, socialistas e até comunistas em todas as suas imagináveis versões, em determinados momentos e por diferentes motivos, considerado próximos do nosso 25 de Abril. Para o PS, que protagonizaria de certo modo os aspectos positivos da Revolução e que imprimiria a sua marca ao sistema político constitucional vigente, esta seria também a sua década dourada. Em Abril de 1974, a social-democracia europeia entra na sua fase de apogeu. Partidos filiados na Internacional Socialista, a que o PS português também pertence, estão então no governo na Alemanha Federal, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Grã-Bretanha, Holanda, Israel, Luxemburgo, Noruega e Suécia. Na Escandinávia, os movimentos sociais-democratas de inspiração sindical começam a desprender-se do conservadorismo em que a sua dependência operária os lançara e a ansiar por um maior protagonismo internacional. Na Grã-Bretanha, a onda de revolução social da segunda metade dos anos 60 contra o chamado establishment reabre as portas ao Partido Trabalhista liderado por Harold Wilson, que se mostra impotente para travar a vaga que transformaria aquele partido, tradicionalmente moderado, num dos mais radicais da Internacional Socialista. Na Alemanha, a democracia controlada do pós-guerra deu lugar a um novo Partido Social-Democrata com forte liderança de Willy Brandt e Helmut Schmidt os quais, apesar das nuances entre si, tinham o objectivo comum de transformar novamente a Alemanha num país unificado e no motor da Europa. Na Áustria, com Bruno Kreisky, na Holanda, com Joop den Uyl, na Bélgica e até na Itália, graças à ameaça do PC de Enrico Berlinguer, emergem igualmente partidos sociais-democratas dispostos a dar nova cara ao socialismo. Socialismo até então caracterizado essencialmente pelo seu eurocentrismo». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de Dom Quixote/JDACT