sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Bocage. Retratos. Fantasmas. Desencantos. Teresa Duarte Carvalho. «… como as Cantatas, as Epístolas, as Odes ou os Idílios, revelará, desde logo, uma tensão dialéctica entre a memória e o esquecimento, a traduzir o receio de ficar aquém do limiar da eternidade que tanto o atraía»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Não tremo de que os séculos me ultrajem:
lá (mercê do pincel, mercê do canto)
meu nome viverá, e a minha imagem».
In Bocage

«A erosão do Tempo conduz à morte. O retrato realiza, pelo seu poder mágico, uma luta contra a morte: ele traz, na ilusão dos volumes, nas sombras do rosto, nos contrastes da alma, na luz pessoal e nos seus sinais, dispersos pelos contornos, um tempo que sobrevive ao Tempo. A morte pode transformar-se, assim, numa cortina para além da qual os vivos do passado continuam a viver no presente. Manuel Maria Barbosa du Bocage parece ter acreditado, como poucos, na possibilidade de atravessar essa cortina. Os versos, dirigidos pelo poeta a um membro da maçonaria que havia composto um soneto na presença do retrato do Senhor Bocage, que muito [o] enterneceu, são disso um óbvio sinal. Com menor clareza, mas, ainda assim, suficiente para o leitor atento, se apresentam algumas composições em que a confiança no talento próprio e na imortalidade poética é notória. Refiro-me, concretamente, quer às composições em que, de forma directa, se dirige ao leitor vindouro (Incultas produções da mocidade / exponho a vossos olhos, ó leitores, soneto 5), quer àquelas que o pressupõem (Quer tristes, quer ditosos amadores, / hão-de falar de mim com dor e espanto). E muitas foram as vezes em que se lhe dirigiu: para fazer coincidir alguma produção poética com a voz da dependência, a que o obrigara a vida instável; para fundamentar certa falta de melodia, pois, em princípio, não pode cantar com melodia / um peito, de gemer cansado e rouco, (soneto 6). A verdade é que, muito embora Bocage parecesse acreditar que a sua imagem literária reunia atributos suficientes para viver depois da morte, e estava certo, uma leitura de superfície, quer da parcela mais conhecida da sua obra poética, os Sonetos, modalidade em que se revela dos mais perfeitos cultores, quer de outros pelouros menos conhecidos da sua escrita, como as Cantatas, as Epístolas, as Odes ou os Idílios, revelará, desde logo, uma tensão dialéctica entre a memória e o esquecimento, a traduzir o receio de ficar aquém do limiar da eternidade que tanto o atraía. Com efeito, de um lado, surge-nos um profuso leque de expressões que aponta claramente no sentido da imortalidade, a que aspira toda a grande criação literária: perpétua fama, grau sublime, nome permanente, padrões e estátuas, véu da eternidade, posteridade, imortal memória e até um Letes preguiçoso; do outro, as formas do apagamento e da morte: o esquecimento, negro e mudo; o Tempo, que gastará, que tudo gasta, como faz questão de sublinhar num idílio; os próprios letreiros da Morte! Oh lei do Fado! / É verdade, é verdade: acaba tudo (soneto 368).
A complexa personalidade poética de Bocage permitiu que, ao longo do tempo, dele se tivessem traçado múltiplos retratos. Começo justamente por aquele que, sendo falso, nunca é demais apresentar, para pôr de lado ou destruir, retrato pintado com tintas malévolas de gosto plebeu, que lhe mancharam a imagem e que sucessivas gerações se habituaram a fixar na parede lisa da comodidade. Nele sobressaem, mais que os olhos azuis ou o nariz alto no meio e não pequeno (soneto 1), uns lábios finos, pelo riso nunca unidos, donde brota um anedotário sem fim que não deixa fissura para a grandeza do seu amplo universo poético, tão marcado pelo lirismo. Sobre este retrato (que, decerto, poria rubras as magras maçãs do rosto do poeta sadino) não luz qualquer talento, traço de que se serviu, com acerto, para a si mesmo se retratar. Perante o perfil desenhado, Bocage repetiria talvez, pudesse ele, a pergunta que, num soneto, a si próprio fizera, ao ver-se envolvido nos braços de uma dama venal: Céus! Quem me reduziu a tal baixeza? (soneto 117). Dir-se-ia que foi a sua própria fama, mais difundida que a obra, excessiva fama que, de clima em clima, nas suas próprias palavras, bebidas em Ovídio, por cem bocas, alígera, semeia.
Houve quem, optando pela linha satírica, preferisse retratá-lo de corpo inteiro, com um pé mergulhado nos botequins das horas tardias da improvisação repentista e maldizente, outro no lodo, a que conduziu a baixa boémia. Na mesma linha, outros, mais fixados no rosto (que no retrato anterior, entretanto, se afundava), desalinharam-lhe irremediavelmente a cabeleira, carregaram demais no azul revolto dos olhos, para os fazer sair das órbitas, esquecidos dos sombreados, das horas de solidão amargamente vividas na residência fixa que a Inquisição (maldita) por duas vezes lhe impôs (das poucas que teve), da entrega ao trabalho disciplinado. Há perfis cujo desenho não se coaduna com suposições apressadas e que exigem o domínio do claro-escuro: Bocage não foi apenas o boémio improvisador, foi também o burilador dos seus versos, o estudioso da tradição clássica, o homem de vasta cultura humanística, tão presente na sua obra, o tradutor elogiado, até por Garrett. Com fundada razão, afirmou Hernâni Cidade que ele soube erguer do lodo os pés jamais nele presos, posto que, mais de uma vez, fundamente mergulhados». In Teresa Duarte Carvalho, Bocage, Retratos, Fantasmas, Desencantos, Revista Humanitas nº LXII, Universidade de Coimbra, 2010, ISSN 0871-1569.

Cortesia da UCoimbra/JDACT