quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A Saga do Rei Menino. A Aventura de um Menino, ficando Encoberto na luz das estrelas… António Cândido Franco. «Aos três anos morre-lhe o avô, o rei João III, e é assim que ele herda a coroa e é rei, o último rei de Portugal, que morreu quase menino, […] deixando Portugal mergulhado na escuridão fria da noite e da morte»

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Retratos
«O pai morreu antes do seu nascimento e a mãe partiu para Espanha pouco depois dele começar a mamar; não mais a viu, a não ser dentro de si. E esse encontro é o retrato da dor; é um retrato pintado com as cores mais sinistras da sombra, uma figura sem figura dentro, um vazio atroz, silêncio e mais silêncio. A tragédia da falta de descendência de Sebastião enraíza aqui; nunca conseguiu ver formosura nas mulheres, mas apenas incómodo. Certos historiadores, acusaram-no de misoginia, mas o rei nada tinha contra as mulheres, sentia-se apenas intimidado na sua presença. Quem se admira que assim fosse com uma mãe fantasmática, que nunca existiu senão à distância? Essa mãe foi na cabeça de Sebastião um ser mitológico batendo as asas no vazio da noite, asas assustadoras que voejavam lá nas terras planas, secas e velhas de Castela e vinham ecoar de forma lúgubre e viscosa ao pé da foz do Tejo. Aos três anos morre-lhe o avô, o rei João III, e é assim que ele herda a coroa e é rei, o último rei de Portugal, que morreu quase menino, poucos anos depois, deixando Portugal mergulhado na escuridão fria da noite e da morte. Que tragédia tão desesperada e tão remota e que grito tão fundo; tão fundo que não se calou e acordou mesmo Sebastião do sono da sua morte. Mas a tragédia de Sebastião é muito mais larga e toca a desgraça de toda uma época crua e sangrenta, com os incêndios dos autos-de fé a lavrarem por toda a Ibéria e as viagens por mar que rebentavam a placenta do mundo e faziam nascer o universo sujo e global dos dias de hoje, a enferrujada esfera armilar do rei português João II. A época é um novelo de morte e renascimento.
Tanto se ouvem os gritos de um parto como os de um funeral; é o clamor terrível dos cristãos-novos e o dos índios de Bartolomeu de las Casas, escravizados no Paraíso, no jardim virgem do Éden, por homens vestidos de ferro e de ferro na mão. Espadas e esferas, armas e armilas eram feitas com o mesmo metal frio e escuro. Também as cruzes eram batidas na mesma frota; não se diferenciavam das espadas e também elas tinham lâminas cortantes. Os gritos dos cristãos-novos são tão chocantes e tão longos como os dos índios violados às portas do Paraíso. São gritos de uma surpresa tão dolorosa que chegam até aqui, ao lugar onde escrevo; atravessam os séculos sem qualquer dificuldade, como um relâmpago a descer do céu. Ainda hoje se ouve o seu rugido de sofrimento infernal. É a pior tragédia, a tragédia das boas razões, do bom catecismo, da boa obediência, a dos frades e a dos catecúmenos à força, num curral de torturas e num escritório de hipocrisia. E a tragédia de Manuel I, a de João III, a de Henrique, cardeal-infante, ou a de Catarina de Áustria, rainha de Portugal, e até a de Carlos V, imperador da Alemanha e primeiro rei de Espanha, e a de Filipe II, seu filho. No fundo, trata-se da tragédia daquele mundo que nasceu em 1209 quando o abade de Citeaux, tendo diante de si os amedrontados habitantes de Béziers, ordenou aos cruzados do rei de França, que haviam descido ao Sul, à procura dos cátaros: - Matai-os a todos! Deus reconhecerá os seus!
É a tragedia dos familiares de Sebastião; e é a nossa, que descendemos desse mundo e somos mesmo sem querer a sua continuação. A tragédia do rei que foi para Alcácer Quibir não é porém apenas negra e trágica. É também cómica e pícara, diverte e por isso merece ser escrita. Em vez das astúcias da sensatez dos seus maiores temos as loucuras da sua inocência ou as inocências da sua loucura. Loucura e inocência fazem dele uma personagem única, como a beleza fizera já de dona Inês um ser excepcional. Enquanto a época geria a pimenta, fazia contas, pintava cenas clássicas, esculpia nus, traçava cartas e passava os primeiros diplomas a engenheiros e topógrafos, Sebastião entretinha-se a representar. E um actor, porque nunca passou de uma criança, e ainda por cima uma criança rebelde ao meio, sem pais e sem convívio. A sua vida é uma paródia, uma mistificação da vida dos adultos, um fruto da imaginação que tanto é infantil como mística. Houve no seu tempo uma freira, Maria de Menezes, que mostrava radiante na palma das mãos as chagas de Cristo. Descobriu-se que as chagas eram pintadas, mas isso em vez de lhe dar vergonha deu-lhe obstinação. A sua lógica era artística, não empírica. Também os sucessos da vida de Sebastião parecem mistificações. E o bisneto de Manuel I e o neto de João III por linha masculina, mas na verdade nada tem a ver com eles. É uma personagem única que está mais próxima da ilusão que da realidade. Passa vinte e quatro anos de vida num palco, representando como um actor ou tão-só como uma criança imaginativa; parece um artista e a sua corte uma tenda de circo». In António Cândido Franco, A Saga do Rei Menino, a Aventura de um Menino, ficando Encoberto na luz das estrelas…, Ésquilo, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-8092-14-4.

Cortesia de Ésquilo/JDACT