sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Uma leitura d’O Encoberto. Arcaica e futura. A dramaturgia de Natália Correia. Armando N. Rosa. «… peça publicada em 1969, ‘é de imediato interditada de circular e de ser posta em cena’. A autora endereça então uma carta a (…) mas o esforço é vão. A peça só viria a ser produzida cenicamente em Lisboa, pela primeira vez, em 1977»

Cortesia de wikipedia

«Arcaica e futura, assim chamei à dramaturgia de Natália Correia, não tendo apenas em conta a temática do presente colóquio. De facto, a obra dramática nataliana aparece-nos numa tensão criativa permanente entre a ascendência dramatúrgica que bebe nas fontes dos dois teatros clássicos (greco-latino, por um lado, e ibérico por outro, nas suas manifestações renascentista e barroca) e o ensaio de formas novas numa expressividade poético-dramática de cunho pessoalíssimo, que se confronta livremente com correntes teatrais novecentistas (surrealismo, teatro épico, teatro antropológico, etc). Entre 1952 e 1989, Natália Correia produz uma obra dramatúrgica, composta por quinze títulos (para além de muitas outras traduções e versões para cena de textos alheios), que fazem dela um dos mais originais dramaturgos portugueses da segunda metade do século XX. Lugar de experimentação híbrida de formas, e não obstante o silenciamento cénico (e também editorial) de que é vítima durante o salazarismo (e não só), o teatro escrito nataliano evolui e viaja por uma irrequieta diversidade de registos genológicos e estéticos: da fábula surrealista, infanto-juvenil (Dois Reis e um Sono, 1958) e adulta (Sucubina ou a Teoria do Chapéu, 1952), ao absurdismo em sátira política (O Homúnculo, 1965); do mito-drama existencial pós-simbolista (D. João e Julieta, 1957-58) ao poema-drama mito-crítico ou auto-referencial (O Progresso de Édipo, 1957, e Comunicação, 1959); do teatro épico-catártico pós-brechtiano e pós-artaudiano (A Pécora, 1967 e O Encoberto, 1969) ao teatro histórico-mítico, que colige o pathos romântico com o estranhamento da alegoria barroca (Erros Meus Má Fortuna, Amor Ardente, 1980); do libreto operático socio-crítico (Em Nome da Paz, 1973, com música de Álvaro Cassuto) ao drama antropológico e arquetípico (Auto do Solstício do Inverno, 1989); do texto para cantata cénica (O Romance de D. Garcia, 1969, com música de Joly Braga Santos) ao teatro versificado ou em prosa que revisita temas da tradição literária, da herança trovadoresca e do romanceiro (A Juventude de Cid, A Donzela que Vai à Guerra, e D. Carlos de Além-Mar, três peças de datação incerta).
De entre estas obras, O Encoberto é um excelente exemplo para observar o jogo criativo nataliano, arcaico e futuro, ao articular a revisitação de matrizes dramatúrgicas ibéricas, perspectivando a partir delas novos horizontes da escrita e da cena em português. Sobre a sua afinidade consciente face a matrizes dramatúrgicas ibéricas, diz a autora: [o meu teatro], embora tenha alguma coisa a ver com o surrealismo, tem muito mais a ver com a tradição ibérica. A minha atracção pela estética barroca, que tem raizes peninsulares, portanto portuguesas, é que me aproxima do teatro ibérico de expressão espanhola, onde eu encontro libertas e estuantes linhas de força que, na dramaturgia portuguesa, por um preconceito anti-castelhano, estão abafadas. (...) Os [autores] que eu encontro mais próximos do meu teatro são Calderón, Lope de Vega, Tirso de Molina. Valle Inclan ainda continua essa tradição (in Lello, 1988). Com O Encoberto, dá-se a tardiamente possível estreia cénica de Natália, para um público adulto, ocorrida já após a revolução de Abril, e dezanove anos depois de Dois reis e um sono ter sido encenada no Teatro Monumental, pelo Teatro do Gerifalto, esta última uma fábula política, disfarçada de peça infanto-juvenil, que transfigurava o confronto entre Humberto Delgado e Salazar, escrita com a colaboração de Manuel Lima. O Encoberto, peça publicada em 1969, é de imediato interditada de circular e de ser posta em cena. A autora endereça então uma conhecida carta a Marcelo Caetano para que este contrarie o néscio ditame da censura, mas o esforço é vão. A peça só viria a ser produzida cenicamente em Lisboa, pela primeira vez, em 1977, no Teatro Maria Matos, pela Repertório-Cooperativa Portuguesa de Teatro (1976-1984), liderada por Armando Cortez, numa encenação de Carlos Avilez, com realização plástica do pintor Lima de Freitas, música de Fernando Guerra, e um vasto elenco liderado por Ruy de Carvalho (no papel de Bonami/Sebastião), acontecendo a estreia mundial na ilha natal da autora, no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, nos Açores (11/2/1977). Segundo Eugénia Vasques, O Encoberto corresponde na dramaturgia nataliana: à fase de maturidade e de domínio de uma escrita que, para além de afirmar a voz da poesia no teatro através das figuras heróicas e condenadas de feiticeiras, vates, loucos, actores e poetas, afirma também a procura de um modelo de teatro épico-narrativo com preferência pela forma em três actos (in Vasques, 1999).
Obra de ficção histórico-cénica, baseia-se ela numa das diversas variantes da lenda do monarca Sebastião I, que se difundiu e desenvolveu a partir dos finais do séc. XVI, e que afirmava ter o jovem rei sobrevivido da batalha contra os mouros de Marrocos, tendo escapado para Itália, onde se manteria sob falsa identidade até conseguir condições para reconquistar a independência perdida de Portugal, entretanto sob o domínio da dinastia dos Filipes de Espanha, desde 1580. Nunca como neste texto a autora, amante da visão barroca, mergulha intencionalmente na indistinção de fronteiras entre o teatro e a representação do mundo, num determinado tempo histórico passado, repetidamente objecto de ironização; de facto, toda a peça aparece como uma reflexão aplicada, a um tempo dramatúrgica e paródica, sobre as virtualidades expressivas do teatro dentro do teatro, que tanto podemos filiar primeiro em Shakespeare, como depois na experimentação modernista de Pirandello. E isto porque a acção nunca deixa de situar-se, objectiva ou simbolicamente, no palco do teatro. Ao reinventar o teatro da História, com esta sua fábula em torno do messianismo sebastianista, a autora pretendeu deixar visíveis e insolúveis as passagens entre a representação e a matéria representada». In Armando Nascimento Rosa, Arcaica e Futura, A dramaturgia de Natália Correia, Uma leitura d’O Encoberto, Dramaturgo e ensaísta, Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT