quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Tratado da Cidade de Portalegre. Diogo Pereira S. Maior. «… estas comarcas antre Alcântara e Portalegre, de que o bispo de Girona afirma ser a segunda de Espanha. Nos Comentários de Jútio César se lê que foi destruída por Cássio Longino, capitão romano, e que os moradores dela se recolheram ao monte Hermínio»

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História dum manuscrito quase ignorado durante mais de três séculos. Relação da cidade de Portalegre e de como foi levantada por cidade pelo muito cristianíssimo rei Dom João triceiro e Dona Catherina sua molher, reis de Portugal
«(…) As terras que naquele tempo tinham nome de município eram terras priviligiadas pelos romanos, como o divia ser esta Ammaia, pois tinha nome de município, como terra de que os romanos faziam muita conta. E deste litreiro se pode coligir que esta terra foi já em tempos antigos florecente e tinha privilégio romano. Suposto que outros querem dizer que a cidade de que atrás falamos, chamada Medóbriga, se chamava naquele tempo Ammaia, e que este pé de coluna siria trazido daí, quando se edificou aquele templo onde ora está, como também veio outra muita pedraria pera com ela se edificar a santa sé desta cidade e o musteiro insigne da Virgem Nossa Senhora da Conceição da ordem do milífluo padre Sam Bernardo. Mas esta rezão não satisfaz, porque o André de Reisende, no primeiro livro De Antiquitatibus Lusitaniae, falando do Monte Hermínio, afirma chamar-se aquela cidade Medóbriga, cujas palavras, tiradas fielmente do latim em nosso português, dizem assi: Eu mostrei já, tempos há, em üa carta que escrevi a Manoel Sousa, alcaide-mor da vila de Arronches, homem nobre e bem entendido, e depois a João Vazeu, como a cidade de Portalegre, Arronches, Alegrete, Marvão e outros lugares de nome estão situados no circuito e redondeza do Monte Hermínio, e junto a ele parecem ainda hoje as ruinas da cidade de Medóbriga, perto da vila de Marvão, o qual monte é mui alto por extremo. E ainda hoje se conserva o nome antigo de Monte Hermínio, e também a cidade distruída se chama vulgarmente Aramenha, dirivada do monte a que está sujeita. Havia pelo circuito e pelas faldas deste monte muitas minas de chumbo, onde ainda agora se vêem muitas furnas e covas de donde os moradores da terra o tiiravam, e também se achava algum ouro. De maneira que, com muita rezão, chamou Plínio aos de Medóbriga chumbeiros. Até aqui é de Reisende.
Diz mais que dista esta cidade da cidade de Mérida sessenta e quatro mil passos, que são 16 léguas medidas das nossas de Espanha. Foi esta cidade mui célebre entre as da nossa Lusitânia, e muito grande, como suas ruinas o mostram, e muito rica. Nela parece ainda hoje üa porta inteira, defronte da qual estava üa ponte que eu ainda vi em pé, muito forte, onde ainda se parece o lastro que nunca o rio o pôde desfazer. Foi dirrubada e disfeita por cobiça de se dizer que furtavam por ela os direitos das mercadorias que passavam pera o reinode Castela. Em seu lugar se fez outra mais abaixo, sobre o mesmo rio, onde está üa torre que está mais abaixo da cidade, que se chama a Portagem.
Ali custumavam risidir os guardas do reino e se despachavam os direitos d’el-rei. Estão também em pé, nesta cidade de Medóbriga, uns edifícios que dizem servirem de capitólio ou consistório, que nunca com as injúrias dos tempos puderam ser arruinados. Teve esta cidade rei em tempos que os romanos senhoreavam a Espanha. Um se chamou Catélio e sua molher se chamava Cálgia, da qual nasceram nove filhas, todas de um ventre; que, enfadada sua mãe com tantas filhas, como era gintia, as mandou deitar no rio por üa criada sua que, compadecida da piadade natural, que faltara na mãi que as havia parido, as deu a criar em um bairrio onde vivia gente cristã, e foram baptizadas e instruídas em nossa santa fé católica. Foram depois santas e mártires; os nomes destas santas traz o Martirotógio Romano, e são os siguintes: Genebra, Liberata, Vitória, Eumélia, Germana, Márcia, Basília, Quitéria, Gema; as quais todas foram martirizadas em diversas partes. Afirma frei Bernardo Brito (liv. 5, cap. 18) que eram estas infantas portuguesas filhas de um rei de Lusitânia, que era senhor de üa cidade que caía por estas comarcas antre Alcântara e Portalegre, de que o bispo de Girona afirma ser a segunda de Espanha. Nos Comentários de Jútio César se lê que foi destruída por Cássio Longino, capitão romano, e que os moradores dela se recolheram ao monte Hermínio de quem atrás fica dito». In Diogo Pereira Sotto Maior, Tratado da Cidade de Portalegre, Temas Portugueses, INCM, CMP, Gráfica Maiadouro, Vila da Maia, 1984.

Cortesia de INCM/CMP/JDACT