sábado, 8 de novembro de 2014

Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos. Bento de Jesus Caraça. Alberto Pedroso. «Conhecia como aos dedos da mão o estado a que tinham chegado a instrução e a cultura no Portugal do segundo quartel do século XX, um dos períodos de maior obscurantismo vividos pelo nosso povo. Conhecia-o…»

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Uma Constante - a Cultura
«(…) Está por escrever ainda a memória que nos dê conta do que foi em toda a sua extensão o percurso da acção cultural feito por Bento Caraça ao longo de trinta anos, desde aquele distante 24 de Agosto de 1919 em que integrou os primeiros corpos gerentes da Universidade Popular Portuguesa, nesse dia eleitos, até ao último alento de vida, a partir do qual foi interrompida para sempre a publicação da Biblioteca Cosmos. De todo esse imenso labor cultural (até hoje tão pouco investigado com o pormenor que tanto merece, apesar de mais de meio século já ter passado sobre a sua morte), queremos evocar aqui, embora de relance, as fases essenciais desse percurso. Mas antes devemos sublinhar que tal labor foi levado a cabo nas condições políticas, económicas, sociais e culturais mais adversas, num tempo em que o nosso país contava com mais de 52% de cidadãos maiores de 7 anos que não sabiam ler e a cultura, à boa maneira nazi-fascista, era tratada por quantos usurpavam o poder, do topo à base do aparelho do Estado, como um luxo e coisa mais que suspeita. Num tempo em que os produtores de cultura e aqueles que procuravam difundi-la erem tidos como perigosos agitadores, a quem era imperioso vigiar os passos. Bento Caraça foi um desses (perigosos agitadores) e um dos primeiros que pôs a nu a ignomínia que o analfabetismo representava para o nosso país. Fê-lo com elevação e desassombro na sessão do MUD realizada em 30 de Novembro de 1946, no salão d’A Voz do Operário: Procuremos, portanto, no censo da população, aqueles que possuem ao menos a instrução primária ou a frequentam ainda. Esses constituem apenas 19,5% da população maior de 7 anos. Um índice mais expressivo ainda nos é dado pelo estudo do grupo da população dos maiores de 20 anos. Num total de 4 milhões e 500 mil maiores de 20 anos há apenas 630 mil que possuem instrução primária completa, ou seja uma percentagem de l4%, o que nos dá a taxa de iletrados reais para a casa dos 36%.
Conhecia como aos dedos da mão o estado a que tinham chegado a instrução e a cultura no Portugal do segundo quartel do século XX, um dos períodos de maior obscurantismo vividos pelo nosso povo. Conhecia-o, além do mais, por ter feito parte das comissões oficiais já referidas atrás, nomeadamente daquela que em 1928 foi incumbida do estudo das medidas destinadas a extinguir o analfabetismo. Nada surpreende, pois, que tão insistentemente tenha proclamado a inadiabilidade de todos para viverem o seu partido em relação a este problema crucial, ser por uma viragem total no sentido do nosso apetrechamento cultural e técnico, ou ser pelo prolongamento do abismo de ignorância e obscurantismo em que se estava fazendo mergulhar o povo português. A acção cultural realizada por Bento Caraça foi intensa e multifacetada, mas talvez não seja limitativo dividi-la em três vectores principais, ainda que correndo o risco de deixar na sombra outras intervenções, ignoradas ou ainda mal conhecidas, entre as quais o projecto de uma revista, Litoral; a edição de um suplemento de O Diabo e ainda o lançamento de uma vasta colecção, Temas. São três esses vectores principais: a Universidade Popular Portuguesa, as várias conferências que proferiu ao longo dos anos e, por último, a Biblioteca Cosmos. Na Universidade Popular Portuguesa irá ter uma intervenção relevante, sobretudo a partir de Dezembro de 1928, momento em que assumiu as funções de presidente do Conselho Administrativo. Mas a sua chegada à Universidade Popular acontecera nove anos antes, em Agosto de 1919, quando foi eleito para os primeiros corpos gerentes da instituição. Muito jovem ainda, recém-chegado ao Instituto Superior de Comércio, Caraça subiu ao modesto 1.º andar da Rua Particular à Rua Almeida e Sousa (onde a universidade Popular tinha a sua sede), pela mão do seu antigo reitor do Liceu Pedro Nunes, A. J. Sá Oliveira e de A. A. Ferreira Macedo, professor do mesmo liceu. Vogal efectivo do Conselho Administrativo, pouco se conhece, no entanto, desta primeira passagem de Bento Caraça pela vida quotidiana da UPP, nem as tarefas que teria a seu cargo, nem tão-pouco as suas intervenções nas iniciativas por ela promovidas. Dessa época apenas nos ficou a notícia de uma conferência que aí fez em 1922, Comércio e Finânças, provavelmente aquela com que iniciou o seu percurso de conferencista. Infelizmente, dela restou somente o sumário, impresso em folha solta e encontrado no seu espólio». In Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça, Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos, Campo das Letras Editores, Porto, colecção Cultura Portuguesa, 2007, ISBN 978-989-625-128-4.

Cortesia de Campo das Letras/JDACT