terça-feira, 18 de novembro de 2014

Saudade da Literatura. Crónica. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «… uma casa onde morar e uma cama onde dormir e um sono onde coincidiremos com a nossa vida, um sono coerente e silencioso, uma palavra só, sem voz, inarticulável, anterior e exterior, como um limite tendendo para destino nenhum e para palavra nenhuma…»

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1988. Chamo-lhes Crónicas porque não sei o nome disto
Louvor e simplificação de Pacheco Pereira
«(…) Pode estranhar-se (até eu estranho) a por assim dizer insistência com que estas crónicas perdem tempo e espaço com Pacheco Pereira, o fogoso deputado liberal e de esquerda e social-democrata e independente. Pacheco Pereira é uma oportunidade que um cronista dificilmente pode deixar escapar. Crónica é relação mais ou menos fiel e verdadeira dos dias, no caso concreto das semanas, do cronista, e os dias, hoje, são de arrependimento e de arrependidos, acontecendo que, na circunstância, Pacheco Pereira terá justamente granjeado estatuto de autêntica metáfora nacional (ainda ninguém se lembrou de um Grande Prémio Nacional do Arrependimento, mas não menosprezemos a imaginação premiante portuguesa...). Depois, estes dias poderão também muito bem ser a última ocasião de falar de Pacheco Pereira e do seu imenso estatuto metafórico, pois o mais provável é que, daqui a algum tempo, já ninguém se lembre outra vez dele, e lá se perdiam duas ou três crónicas que, elas scripta manent, permanecem.
A explicação é esta; espera-se que seja convincente... Vem desta vez Pacheco Pereira a propósito de ter surpreendido o jornalismo menos avisado com a afirmação de que, de Maio de 68 para cá, pouco mudou na Europa, muito em Portugal, e que ele próprio não mudou nada! Achou algum jornalismo e algum cronismo, facilmente levados pelo rio das aparências, que Pacheco Pereira, pelo contrário, terá mudado muito mais do que Portugal, pelo facto de hoje ter bancada na Assembleia da República e de ser aí autor das evidências que se conhecem. Compara esse cronismo os imperativos categóricos que Pacheco Pereira emite hoje na Assembleia da República com os emitidos pelo mesmo Pacheco Pereira há alguns anos atrás nas ruidosas fileiras ML. E vê abissais diferenças. Quem vê diferenças, ensina o Livro do Tao, caminha de morte em morte. Desse castigo está no entanto livre este vosso criado, que na verdade não vê diferença nenhuma entre o que Pacheco Pereira dizia há alguns anos e o que diz agora, mesmo, e sobretudo, quando era autor das mais fervorosas prosas espargindo incenso teórico sobre a prática estalinista.
Quem não vê diferenças, explica agora a oftalmologia caminha para a miopia galopante. Será talvez o caso do cronista destas, para quem Pacheco Pereira continua tão estalinista como há 20 anos ou há menos. O estalinismo é que mudou de sítio, eis a tese que aqui se defende. De sítio e de natureza. Hoje o estalinismo já não manda ninguém par a a Sibéria quando muito manda para o desemprego, e com subsídio e tudo. Assina com pseudónimo e os seus decretos perderam o ar do primarismo dos bons velhos tempos. E tendo o estalinismo e a intolerância mudado de sítio, mesmo tendo-se (o estalinismo e a intolerância) tornado soft, e descafeinado pelo caminho, que poderia Pacheco Pereira fazer senão correr atrás deles?
A visão teórica da sociedade e do mundo que notabilizaram Pacheco nas barricadas do marxismo-leninismo como o notabilizaram hoje nas bancadas parlamentares do PSD ter-se-ão, há-de reconhecer-se; trata-se, todavia, mais do que de um aggiornamento, de um (como é que se diz?) percurso político. Ora um percurso é um caminho para chegar a algum sítio, quer se trate de uma viela tortuosa quer da mais transparente das auto-estradas. No caso de Pacheco Pereira, é convicto da crónica, trata-se de um caminho para não sair de sítio nenhum. Que seja tão incompreendido é o preço da coerência desse caminho, porque em política ninguém perdoa aos que, como Pacheco Pereira, não mudam. Para chegares onde estás, escreve Eliot nos Quatro Quartetos, (tens que seguir por um caminho onde não há êxtase), e em êxtase foi coisa que nunca nenhum deputado do povo, nem nenhum povo, viu Pacheco Pereira na Assembleia da República. Quando muito é possível vê-lo em êxtase nas prosas do Semanário, sobretudo quando se exercita em parágrafos indescritíveis, e à falta de purgas mais gloriosas, a decretar a purga dos jornalistas dos jornais estatizados. (Segundo se lê esta semana no Tempo, o entusiasmo ortodoxo leva-o já a reclamar purgas dentro do próprio PSD!).
Os jornalistas têm sido, desde os tempos imemoriais da URSS de Estaline, os mais apropriados objectos de purgas. Os jornalistas e os camaradas de partido e de bancada. Há uma altura na vida das sociedades e dos partidos, como na vida das árvores, em que chega o tempo da poda; e as ramificações e as florescências jornalísticas e partidárias tendem, como se sabe, perigosamente para a heterodoxia. Se alguma coisa mudou fomos nós, foi o Universo, foi o alfaiate de Pacheco Pereira; ele não. Talvez esteja um pouco mais gordo, um pouco mais (sage), talvez tenha perdido alguns cabelos e alguns escrúpulos, mas continua a ser o bom velho Pacheco Pereira de Maio de 68, de Março de 75 e da semana passada. Se ele diz que não mudou nada por que diabo não havemos de acreditar nele? In Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 21/05/1988.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de AssírioAlvim/JDACT