terça-feira, 11 de novembro de 2014

Nenhuma Palavra. Nenhuma Lembrança. Manuel A. Pina. «Não temos mais nada, e com tão pouco havemos de amar e de ser amados, e de nos conformar à vida e à morte, e ao desespero, e à alegria, havemos de comer e de vestir, e de saber e de não saber…»

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Primeiro Poema
«Sem horizonte ou lua, sem vento nem bandeira». In Maaske

«A palavra, vida inteira, mata.
O seu silêncio náo fala nem cala: ri.
Sem antes, nem depois, nem agora.
É o infalável que fala.
Não o ouças: ouve-o.
Oh, falar sem ouvir,
como ri o riso
pleno dos mortos,
os meus e os teus mortos
debaixo de nós!»
1991


Ludwig W. em 1951
«As palavras (o tempo e os livros que
foram precisos para aqui chegar,
ao sítio do primeiro poema!)
são apenas seres deste mundo,
insubstanciais seres, incapazes também eles de compreender,
falando desamparadamente diante do mundo.
As palavras não chegam,
a palavra azul não chega,
a palavra dor não chega.
Como falaremos com tantas palavras? Com que palavras e sem
que palavras?
E, no entanto, é à sua volta
que se articula, balbuciante,
o enigma do mundo.
Não temos mais nada, e com tão pouco
havemos de amar e de ser amados,
e de nos conformar à vida e à morte,
e ao desespero, e à alegria,
havemos de comer e de vestir,
e de saber e de não saber,
e até o silêncio, se é possível o silêncio,
havemos de, penosamente, com aS nossas palavras construi-lo.

Teremos então, enfim, uma casa onde morar
e uma cama onde dormir
e um sono onde coincidiremos
com a nossa vida,
um sono coerente e silencioso,
uma palavra só, sem voz, inarticulável,
anterior e exterior,
como um limite tendendo para destino nenhum
e para palavra nenhuma».
Poemas de Manuel António Pina, in ‘Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança

In Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança, Assírio e Alvim, Peninsulares 56, Lisboa, 1999, ISBN 972-37-0541-9.

Cortesia de AAlvim/JDACT