terça-feira, 18 de novembro de 2014

Mitos de Ontem e de Hoje. Idade Média. O Oceano e a Ásia eram povoados de monstros? Paulo Sousa Pinto. «É, possivelmente, o mito mais divulgado e resiliente da história de Portugal, como se de uma praga viral ou de uma bactéria resistente aos antibióticos se tratasse: há muito que se provou que não tem fundamento…»

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«(…) Homero, algures no século VIII a. C., parece, de facto, ter concebido o mundo como um disco, no qual a terra firme (com o mar Mediterrâneo no centro) estava cercada por um rio oceânico em permanente movimento. Mas já na Grécia Clássica, a noção da esfericidade da Terra era dominante. O geógrafo Eratóstenes (276-194 a. C.) chegou mesmo a calcular o seu diâmetro com boa precisão, mas foi Platão e, sobretudo, Aristóteles quem fez vingar definitivamente o conceito da Terra redonda que passou aos geógrafos da Idade Média. Nesta época subsistiam, portanto, várias tradições herdadas da Antiguidade, cujos autores foram, ainda e durante muito tempo, as autoridades mais respeitadas nestas temáticas, em conjunto com a Bíblia e alguns Doutores da Igreja. Não concordavam entre si em vários aspectos, mas o pressuposto de que o mundo era esférico dominava de forma clara e inequívoca. A tradição da Terra plana cujo principal defensor foi Cosmas Indicopleustes, um monge e viajante egípcio que viveu no século VI, era diminuta e não mereceu grande crédito entre os comentadores e autores medievais mais importantes. Isto não significa que não subsistissem dúvidas e incongruências. Uma das mais interessantes diz respeito à necessidade que o homem medieval tinha de tentar conciliar os conhecimentos dos autores gregos e romanos com as palavras da Bíblia. Ora, esta fala em quatro cantos do mundo; como era então possível conceber um mundo esférico com quatro cantos? A maior parte dos autores minimizava esta contradição ou deixava-a em aberto. Quem desenhava e ilustrava mapas resolvia esta quadratura do círculo com o traçado de um mundo esférico dentro de um quadrado, preenchendo os quatro cantos vazios com iluminuras.
A concepção de um mundo plano, além de constituir uma tradição geográfica de reduzida expressão, não era, portanto, um obstáculo à exploração e à navegação oceânica. Havia outras ideias defendidas por alguns autores que colocavam questões bem mais sérias a esta possibilidade. A mais importante era, talvez, a dos antípodas. Vários geógrafos da Antiguidade discutiram a possibilidade de existência de vida humana no outro lado do mundo. É uma questão que nos parece ridícula hoje em dia, mas que era muito pertinente na época. Uma vez que havia a percepção de que a temperatura aumentava quando se avançava para sul, alguns autores concebiam a existência de uma zonatórrida, à latitude do equador, onde a vida não seria possível devido ao extremo calor. Alguns mapas da época assinalam uma faixa de oceano em toda esta região, separando o que chamamos hoje de hemisfério norte do hemisfério sul. Mas prosseguindo ainda mais para sul, existiria uma outra zona temperada como a da Europa? E seria habitada? Eram isto os antípodas.
Foi o geógrafo romano Macróbio (século V) quem sistematizou estas ideias, que perduraram ao longo dos séculos seguintes, e alargou igualmente o debate e as dúvidas: seria possível viajar e passar incólume pela zona tórrida? E se existissem homens no outro lado do mundo (ou seja, nos (antípodas), seriam descendentes de Noé? De que filho? Por fim, existia uma outra tradição, igualmente importante mas muito mais recente, a do geógrafo greco-romano Ptolomeu (século II), redescoberta na Europa no século XV. Esta lançava dúvidas igualmente pertinentes sobre as viagens de exploração, em concreto as que os Portugueses fizeram no século XV: o continente africano prolongava-se indefinidamente para sul, não permitindo qualquer comunicação marítima com o Índico e com a Ásia. Neste, como noutros aspectos e interrogações, a prática de navegação e de contacto directo constituiu a prova definitiva de confirmação ou refutação das tradições geográficas europeias, que se haviam mantido praticamente inalteradas durante mais de um milénio.

Existiu uma Escola de Sagres?
É, possivelmente, o mito mais divulgado e resiliente da história de Portugal, como se de uma praga viral ou de uma bactéria resistente aos antibióticos se tratasse: há muito que se provou que não tem fundamento, mas permanece incrustado no imaginário nacional e continua presente em livros, sítios da Net, materiais de promoção turística e, até, por entidades respeitáveis de quem se exigiria maior rigor e responsabilidade. A maior empresa nacional paga anúncios de página inteira na imprensa escrita com o homem do chapeirão com a seguinte legenda, da remota escola náutica de Sagres desenhou-se um Mundo novo, criou-se a civilização transoceânica, renovou-se Portugal. Um prestigiado instituto de uma reputada universidade portuguesa afirma-se apostado em renovar o fantástico exemplo cosmopolita da Ecola de Sagres, com a qual o infante Henrique colocou Portugal no caminho dos Descobrimentos. E lá fora? Ainda é possível encontrar curiosas reminiscências em obras de reputados historiadores estrangeiros da actualidade: o infante Henrique criou a Escola de Sagres para onde convidou, com elevadíssimos honorários, construtores náuticos, navegadores, matemáticos, astrónomos e geógrafos, entre outros especialistas estrangeiros». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de E. dos Livros/JDACT