domingo, 23 de novembro de 2014

Mataram Mariana. Álvaro Arranja. «Porém, essas mortes (cinco meses após o 5 de Outubro) e a imagem das indefesas operárias conserveiras baleadas na Avenida Luísa Todi, quando lutavam pela sua dignidade como operárias e como mulheres…»

jdact e arquivoamericoribeiro

«Quase nada sabemos sobre Mariana Torres e António Mendes, os dois operários mortos em 13 de Março de 1911, em Setúbal, pelas balas da recém-criada Guarda Republicana. Porém, essas mortes (cinco meses após o 5 de Outubro) e a imagem das indefesas operárias conserveiras baleadas na Avenida Luísa Todi, quando lutavam pela sua dignidade como operárias e como mulheres, foram um acontecimento marcante para a relação entre a República e o operariado e a própria evolução histórica da 1ª República. Passados os momentos iniciais da natural euforia revolucionária, imediatamente posterior ao 5 de Outubro de 1910, o novo regime tem de encarar os problemas do país. O ano de 1911, vai ser preenchido por esse choque com a realidade de um país alheio aos grandes ventos da industrialização que sopram no centro e norte da Europa.
Dos vários problemas que se colocam ao novo regime, a situação social é o de mais difícil resolução. A República herda uma sociedade baseada numa desigualdade social profunda, com uma oligarquia económica pouco habituada a ver contestados os seus privilégios. As várias crises políticas e económicas do regime monárquico constitucional, não puseram em causa essa dominação. Do outro lado, nos sectores populares, o novo regime defensor dos princípios da liberdade e igualdade, era encarado como a possibilidade da melhoria das condições de vida extremamente penosas da maioria do povo. Uma esperança, quase messiânica, nas virtualidades da República, estava nas mentes de vastos sectores do operariado (sobretudo de Lisboa, margem sul do Tejo [margem esquerda do Tejo], Setúbal e Alentejo).
Afinal tinham sido eles a combater na Rotunda (mesmo quando muitos militares tinham batido em retirada), ou nas ruas de Setúbal, Almada, Moita ou Loures, no dia 4 de Outubro. Tinham sido eles a guardar os bancos, onde certamente não tinham nenhuma conta aberta. A República pertencia-lhes porque tinha sido conquistada com o seu sangue. Esse idílio entre o operariado e o novo regime republicano vai ser posto em causa, logo nos finais de 1910, com a questão da legislação referente ao direito de greve dos trabalhadores a ao lock-out patronal. Para o movimento operário organizado nas associações de classe, já então maioritariamente de tendência anarco-sindicalista, a legislação aprovada pelo Governo Provisório da República impõe limitações inaceitáveis aos direitos dos trabalhadores. Essa legislação passará à história com a qualificação de decreto-burla.
1911 verá o desencadear de vastos movimentos grevistas, amplamente secundados por esses mesmos operários que se tinham batido (por vezes de arma na mão) pela implantação do novo regime. A greve das conserveiras setubalenses é um momento decisivo dessa relação operariado-República, sobretudo após os fuzilamentos de Setúbal (como os designaram na imprensa da época) em Março de 1911. Seguiu-se uma paralisação geral do trabalho, convocada em Lisboa, de solidariedade com os operários setubalenses, momento em que se fala pela primeira vez em Portugal de uma Greve Geral. Desses momentos de viva conflitualidade social prestaremos particular atenção, para além da greve de Setúbal, à greve da União Fabril (a futura CUF) e à relação triangular Alfredo da Silva, República e operariado. Abordaremos igualmente o desenrolar do Congresso Sindicalista de 1911 e o debate sobre o direito à greve, travado na Assembleia Constituinte.

As greves após o 5 de Outubro
Em 5 de Outubro de 1910, a proclamação da República só foi possível mercê da contribuição activa que uma grande parte do operariado deu, não só à preparação do movimento, mas também à luta armada desencadeada contra as forças monárquicas. Se não se tivesse registado a intervenção do elemento popular, a República não haveria triunfado. A revolução republicana de 5 de Outubro viu burgueses a encomendar bombas e proletários a manejá-las. Nos dias seguintes à implantação da República assistiu-se em Lisboa a um acontecimento pouco habitual noutras revoluções, com dezenas de populares armados a fazer sentinela a bancos, rotos e famintos a guardarem os cofres abarrotados de libras». In Álvaro Arranja, Mataram Mariana, Dos Fuzilamentos de Setúbal à Ruptura Operariado-República em 1911, Centro de Estudos Bocageanos, nº 14, Setúbal, 2011, ISBN 978-989-8361-05-9.

Cortesia CEB/JDACT