sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Lisboa. Encruzilhada de Muçulmanos Judeus e Cristãos. 850º Aniversário da Reconquista de Lisboa. Paulo Pereira. José Mattoso. «Em 1947 considerava-se que a conquista de Lisboa tinha sido como que um ponto zero. Um começo absoluto. Reduzia-se, assim, a nada, ou a aspectos puramente negativos o passado muçulmano»

Cortesia de wikipedia

Arqueologia na Grande Cidade. 850º Aniversário da reconquista de Lisboa
«(…) Quero começar a apresentação deste Encontro, confessando que tenho muita pena por não ter podido aqui apresentar nenhuma investigação original, juntando-me assim ao notável conjunto de especialistas de história medieval que aqui se reuniram para tratarem de vários temas relativos à conquista de Lisboa em 1147. Não preciso de explicar as razões da minha impossibilidade nem as da minha pena. Creio que elas se podem imaginar facilmente. Quis todavia dar o meu apoio a esta iniciativa, antes de mais pela amizade que me liga à maior parte dos seus participantes, mas também pelo inegável interesse do tema e sobretudo pela maneira como os organizadores lhe imprimiram uma determinada orientação. Creio, ir ao encontro dos seus objectivos fazendo nesta apresentação do Encontro uma breve reflexão sobre o significado daquilo mesmo que aqui se procura. A melhor maneira de o tomar evidente parece-se ser partindo de uma breve comparação da temática privilegiada pelos autores das comunicações com a maneira como se comemorou há 50 anos o 8º Centenário deste mesmo acontecimento. De facto, em natural que, sendo então um Centenário pleno e não apenas um aniversário, se tivesse dado a maior solenidade e o maior relevo às comemorações de então. E todavia, não ficou delas senão a lembrança de um grande cortejo histórico organizado, se não me engano, por Leitão de Barros. Não sei se houve também alguma iniciativa de carácter científico, mas, se existiu, deve ter ficado circunscrita às salas das Academias, e deve ter consistido antes em algum discurso de predominantemente laudatório ou meramente evocativo. Não me lembro de nessa altura se ter apresentado nenhum texto histórico inovador sobre o facto que então se comemorava. Era esse, de resto, o tom habitual das comemorações nacionalistas, como se tomou evidente em 1940 e nos anos seguintes: o trabalho científico produzido nessa época tem de se considerar quase insignificante face ao esforço do governo, que se concentrou, como se sabe, na Exposição do Mundo Português, na reconstrução de castelos e nas cerimónias comemorativas que deixaram dezenas de lápides evocativas por esse país fora. Como é evidente, o propósito de situar os factos históricos no seu contexto e para os compreender em si mesmos era muito menor do que para desenvolver em torno deles uma retórica exortatória centrada nas virtudes nacionais, para desenrolar rituais colectivos de que se esperava como efeito o reforço da coesão social e política, para explorar e popularizar mitos, muitas vezes de forma artificial e forçada. Hoje, os rituais e os mitos demasiado presos a glórias passadas perderam a sua eficácia social, entre outras razões porque o carácter propagandístico demasiado pronunciado lhes retirava credibilidade e revelava propósitos que não podem, hoje, deixar de se considerar alienantes. O uso e abuso dos mitos e glórias nacionais tomou-se assim um instrumento de degradação da sua própria eficácia social. Hoje deixou de ser possível falar do passado sem partir de uma análise objectiva historicamente fundamentada e desprendida de intenções ideológicas. Os mitos e rituais continuam, obviamente, a constituir uma componente fundamental da vida social, mas deixaram de se basear nas glórias passadas. Não sabemos bem quais são esses mitos: talvez um deles seja o de que a nossa salvação colectiva depende da integrarão na Europa comunitária. Seja como for, os sucessos do passado deixaram de ser penhor das vitórias que desejamos alcançar no momento presente. O presente impõe-se-nos como um desafio e obriga-nos a sermos racionais e realistas.
Nesta conjuntura, apercebemo-nos cada vez mais de que a compreensão do passado se tomou ela própria forma privilegiada de construir o presente. Parte-se do princípio de que a percepção dos factores de que dependeu outrora o desenrolar dos acontecimentos decisivos no devir histórico permitirá também orientar as nossas escolhas perante a complexa realidade que nos envolve. Apercebemo-nos de que há nela fenómenos e estruturas que só se podem compreender devidamente quando os colocamos num contexto histórico. Acontece isto mesmo, até para factos tão longínquos como a conquista de Lisboa em 1147. Trata-se, na verdade, de um acontecimento decisivo não só para a história nacional, mas também para a história europeia. É preciso analisá-lo e tentar compreendê-lo em todos os seus aspectos e condicionantes, assim como em todas as suas consequências.
Tal é a melhor justificação para o Encontro que hoje iniciamos. As comunicações previstas concentram-se na sua quase totalidade sobre o mundo e a época islâmicas. Também este facto é significativo de uma alteração fundamental em relação com o que aconteceu há cinquenta anos. Nessa altura, o que chamava a atenção era o ponto de vista dos conquistadores, e portanto a inclusão da cidade no espaço cristão, assim como o papel que passou a desempenhar na construção do País. Em 1947 considerava-se que a conquista de Lisboa tinha sido como que um ponto zero. Um começo absoluto. Reduzia-se, assim, a nada, ou a aspectos puramente negativos o passado muçulmano. A vitória sobre os mouros teria esmagado por completo o passado islâmico. Portugal não devia nada à civilização árabe. Pelo contrário, a construção da nação só teria sido possível devido ao esmagamento da barbárie sarracena.
Hoje considera-se, com razão, que esta interpretação da conquista de Lisboa é puramente absurda. Em História não há começos absolutos. A ignorância histórica acerca do passado muçulmano, que se verifica na historiografia portuguesa é, portanto, demasiado gritante para que não se considere urgente preenchê-la. Mas a quase total ausência de uma tradição científica nesta área tomou a tarefa especialmente difícil e morosa. Foram necessário passarem mais de vinte anos depois do 25 de Abril, ou seja depois da data em que desapareceu a opressão política, consciente ou inconsciente, sobre a investigação universitária, para que finalmente se pudesse reunir um número considerável de conhecedores capazes de trabalharem sobre esta área. Esperamos, pois, que este Encontro constitua um importante contributo para se desenvolverem os estudos e os conhecimentos nesta área tão carenciada». In Paulo Pereira, José Mattoso, Arqueologia na Grande Cidade, Lisboa, Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos (850º aniversário da reconquista de Lisboa), Projectos Portos Antigos do Mediterrâneo, Acção Piloto Portugal/Espanha/Marrocos, FEDER, Edições Afrontamento, Porto, 2001, ISSN 0872-2250.

Cortesia de EAfrontamento/JDACT