segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Fogos. 1935. Prosas Líricas. Marguerite Yourcenar. «Entre os lençóis húmidos de febril, consola-se com a ajuda de sussurros de confissão que chegam até às da infância, balbuciadas no pescoço da ama; suga a sua infelicidade; transforma-se por fim na miserável criada de Fedra»

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«Espero que este livro nunca venha a ser lido. Há entre nós melhor do que um amor: uma cumplicidade». In Marguerite Yourcenar, ‘Fogos

«(…) Ausente, a tua figura aumenta a ponto de encher o universo. Passas ao estado fluido que é o dos fantasmas. Presente, ela condensa-se; atinges as concentrações dos metais mais pesados, do irídio, do mercúrio. Morro com esse peso quando ele me cai sobre o coração. O admirável Paul enganou-se. (Falo do grande sofista e não do grande pregador.) Existe, para todos os pensamentos, para todos os amores que, entregues a si próprios, talvez desfalecessem, um cordial singularmente enérgico que é todo o resto do mundo, que está em oposição a ele, e que não o vale. Solidão... Não creio como eles crêem, não vivo como eles vivem, não amo como eles amam... Morrerei como eles morrem. O álcool desembriaga. Depois de alguns golos de conhaque já não penso mais em ti.

Fedra ou o desespero
Fedra consegue tudo. Abandona a mãe ao touro, a irmã à solidão: estas formas de amor não a interessam. Abandona o seu país como quem renuncia aos seus sonhos; renega a família como quem vende as suas recordações na feira da ladra. Nesse meio em que a inocência é um crime, assiste desgostosa àquilo em que acabará por se tornar. O seu destino, visto do exterior, horroriza-a: ainda não o conhece senão sob a forma de inscrição na muralha do Labirinto: pela fuga arranca-se ao seu horrível destino. Desposa distraidamente Teseu, tal como Santa Maria a Egípcia pagava com o corpo o preço da sua passagem; deixa afundar-se no Ocidente, num nevoeiro de tábula, os matadouros gigantes da sua espécie da América cretense. Desembarca, impregnada com o odor do rancho e dos venenos do Haiti, sem saber que traz em si a lepra contraída sob um tórrido Trópico do coração. A sua estupefacção à vista de Hipólito é a de um viajante que descobre ter retrocedido no seu caminho sem o saber: o perfil daquela criança recorda-lhe Cnossos, e o machado de dois gumes. Odeia-o, educa-o; ele cresce contra ela, repelido pelo seu ódio, desde sempre habituado a desconfiar das mulheres, forçado desde a escola, desde as férias do Ano Novo, a saltar os obstáculos que espalha em seu redor a inimizade de uma madrasta. Ela tem ciúme das suas flechas, quer dizer, das suas vítimas, dos seus companheiros, quer dizer, da sua solidão. Nessa floresta virgem que é o lugar de Hipólito, planta inconscientemente os postes indicativos do palácio de Minos: traça através desses bosquedos o caminho de sentido único da Fatalidade. Em cada instante, recria Hipólito; o seu amor é realmente um incesto; não pode matar aquele rapaz sem cometer uma espécie de infanticídio. Fabrica a sua beleza, a sua castidade, as suas fraquezas; arranca-as do fundo de si própria; isola dele essa pureza detestável, para a poder odiar na figura de uma virgem insípida: forja com todas as peças a inexistência de Arícia. Embebeda-se do gosto do impossível, único álcool que serve sempre de base a todas as misturas da infelicidade. No leito de Teseu, tem o amargo prazer de na realidade enganar aquele que ama, e em imaginação aquele que não ama. É mãe: tem filhos como teria remorsos. Entre os lençóis húmidos de febril, consola-se com a ajuda de sussurros de confissão que chegam até às da infância, balbuciadas no pescoço da ama; suga a sua infelicidade; transforma-se por fim na miserável criada de Fedra. Perante a frieza de Hipólito, imita o sol quando incide num cristal: transforma-se em espectro; já não habita o seu corpo senão como o seu próprio inferno. Reconstrói no fundo de si própria um Labirinto onde não pode senão reencontrar-se: o fio de Ariana já não lhe permite sair de lá pois que o enrolou em redor do coração. Enviúva; pode finalmente chorar sem que lhe perguntem porquê; mas o negro não fica bem a essa figura sombria: ela odeia o seu luto por dar troco à dor. Desembaraçada de Teseu, transporta a sua esperança como uma vergonhosa gravidez póstuma. Faz política para se distrair de si própria: aceita a Regência tal como começaria a tricotar um xaile. O regresso de Teseu dá-se demasiado tarde para a fazer regressar ao mundo das fórmulas onde se acantona esse homem de Estado; não consegue lá entrar senão por meio de um subterfúgio; inventa, de alegria em alegria, a violação de que acusa Hipólito, de tal forma que a sua mentira é para ela uma saciedade. Diz a verdade: suportou os maiores ultrajes; a sua impostura é uma tradução. Toma veneno, porque está mitridatada contra si própria; o desaparecimento de Hipólito cria o vazio em seu redor; aspirada por esse vazio, mergulha na morte». In Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.

Cortesia Difel/JDACT