sábado, 22 de novembro de 2014

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «Tinha a cara bonita, mas demasiado pequena para justificar a sua arrogância, quase impertinência que, sem dúvida, se sustentava sobre o triângulo harmonioso da cintura e dos peitos, ainda que se se conseguisse deixar de olhar para eles…»

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«Seriam’eu na ermida de San Simon
e cercáronmi as ondas que grandes son
eu atendend’o meu amigo! E verrá?

Estando na ermida, ant’o altar
cercáronmi as ondas grandes do mar
eu atendend’o meu amigo! E verrá?

E cercáronmi as ondas, que grandes son
nen ei barqueiro nen remador
eu atendend’o meu amigo! E verrá?

E cercáronmi as ondas do alto mar
non ei barqueiro nen sei remar
eu atendend’o meu amigo! E verrá?

Non ei barqueiro nen remador
morrerei, fremosa, no mar maior.
eu atendend’o meu amigo! E verrá?

Non ei barqueiro nen sei remar
morrerei eu, fremosa, no alto mar
eu atendend’o meu amigo! E verrá?»
Mendinho, ‘século XIII

«Estava eu na ermida de San Simón/ e cercaram-me as ondas que grandes são/ eu esperando o meu amigo! Virá?// Estando eu na ermida ante o altar/ cercaram-me as ondas grandes do mar/ eu esperando o meu amigo! Virá?// E cercaram-me as ondas que grandes são/ nem tenho barqueiro nem sei remar/ eu esperando o meu amigo! Virá?// E cercaram-me as ondas do alto mar/ não sou barqueiro nem sei remar/ eu esperando o meu amigo! Virá?// Não tenho barqueiro nem remador/ morrerei, formosa, no mar maior/ eu esperando o meu amigo! Virá?// Não tenho barqueiro nem sei remar/ morrerei formosa no alto mar/ eu esperando o meu amigo! Virá?»

«O prémio Carlomagno ilumina-se. Fez parte, suponho, dos meus sonhos e aí está, ao meu alcance. Só me levantarei para o ir receber a Mainz ou a Bruxelas, ainda está por decidir, no começo da próxima Primavera. Lembro-me dele todos os dias, quando acordo, e imagino-me a recebê-lo, tenho, inclusive, já pensado o eixo do pequeno discurso que devo pronunciar. Vou por aí de discurso em discurso ainda que lhe chame conferências e amanhã, precisamente amanhã, 23 de Dezembro, vou pronunciar um sobre A Transubstanciação Mítica de Erec e Enide. Da janela do meu quarto do hotel posso ver o percurso das escassas lanchas que vêm de Cesantes até ao pequeno porto das unidas ilhas de San Simon e de San Antonio, e, ainda que ignore a que horas seja o transbordo de Myrna, confio que o simples gesto de me assomar, de me encostar no parapeito, encurtará a chegada de Mrs. War Breast. Com a vetustez de quase 30 anos, Myrna War Breast aparecia em flashback num encontro de arturianos em Exeter, um impressionante cabelo loiro curto, pescoço ao estilo de Modigliani mas corrigido pela ginástica rítmica de todas as manhãs, cintura de vespa para aumentar ao máximo a oferta dos seus dois peitos suficientes e ao mesmo tempo espectaculares, capazes de ficarem suspensos no vazio sem soutien, uma homenagem da natureza a si mesma, os peitos de Myrna, a nona maravilha do mundo, como costumam qualificá-los os artúricos, arturistas ou arturianos. E como Burton observara o efeito que Myrna me tinha causado, advertiu-me: - Júlio, ela é perigosíssima. Tem apenas trinta anos e já se divorciou duas vezes. Mas esta é das que se divorciam para se casar e adora substituir um especialista em assuntos arturianos por outro especialista em assuntos arturianos. Vem aqui, seguramente, à caça.
Tinha a cara bonita, mas demasiado pequena para justificar a sua arrogância, quase impertinência que, sem dúvida, se sustentava sobre o triângulo harmonioso da cintura e dos peitos, ainda que se se conseguisse deixar de olhar para eles e se se levantasse a vista via-se um notável rosto onde os lábios e os olhos segredavam e, ao mesmo tempo, prometiam malícias, sobretudo os olhos que pareciam saber tudo e ter visto tudo sobre ti. Era do mais bonito que eu jamais tinha contemplado em qualquer universidade ou congresso, especialmente entre o professorado, e, talvez por isso, me tivesse custado dois encontros, o de Exeter e o de Saint-Malo, até considerá-la como um colega mais, competitivo e extraordinariamente preparado, sobretudo no tratamento do Graal da lenda arturiana, a partir de um certo fascínio por Parsifal, o Galês, o filho da Dama Viúva, de quem Myrna avaliava que lhe bastava a contemplação da passagem de cinco cavaleiros para saber que não podia ter outro destino que não fosse o da cavalaria. A maternidade três vezes referendada de Myrna tinha-a ajudado a assumir o papel da mãe de Parsifal, aterrorizada pela sorte do seu filho mais novo e único, já que o seu esposo e os filhos mais velhos tinham morrido em lances de cavalaria. Parsifal era como se fosse um filho adoptivo de Myrna, especialmente na versão de Chrétien de Troyes, e sentia demasiado concluído o Parsifal de von Eschenbach, ainda que assumisse o grande interesse de sublinhar a dualidade da personagem, herói contraditório, bom e mau ao mesmo tempo. Nem sequer uma professora especialista em literatura medieval pode negar de todo a dependência à sua época de culminação adolescente, a de Myrna ultimada com os anos 50, quando o cinema transformava heróis ambíguos em bens de consumo. Raramente um especialista em matéria arturiana ou da Bretanha é apenas um especialista num assunto tão subtil como breve, pelo que a maioria dos especialistas entram por outras causas da Baixa Idade Média ou, inclusive, vão até ao Renascimento ou se exilam, como Myrna, noutras épocas e culturas e conseguem, como ela, ser uma autoridade universal em Defoe. Porquê precisamente Defoe? Porque estava ao serviço da revolução burguesa? Não. Sou partidária de Defoe porque era um confidente, esteve condenado ao pelourinho e, no entanto, criou o protótipo do herói do seu tempo, o Robinson Crusoe». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT