domingo, 9 de novembro de 2014

Ensaio sobre o Absurdo. O Mito de Sísifo. Albert Camus. «De quem e de que, de facto, posso dizer conheço isso? Este coração, em mim, posso experimentá-lo e julgo que ele existe. Este mundo, posso tocá-lo e julgo ainda que ele existe»

Cortesia de wikipedia

Os muros absurdos
(…) Uma vez mais temos aí evidências. Repetirei, novamente, que elas não são interessantes em si mesmas e sim nas consequências que se podem tirar delas. Conheço outra evidência: diz-me que a homem é mortal. No entanto, podem-se contar os espíritos que tiraram disso as conclusões extremas. É preciso considerar como uma referência permanente, neste ensaio, a constante separação entre o que imaginamos saber e o que realmente sabemos, o consentimento prático e a ignorância simulada que nos levam a viver com ideias que, se verdadeiramente experimentássemos, deveriam perturbar toda a nossa vida. Diante dessa contradição inextricável do espírito, compreenderemos com precisão e sem reserva o divórcio que nos separa de nossas próprias criações. Enquanto o espírito se cala no mundo imóvel de suas esperanças, tudo se reflecte e se organiza na unidade da sua nostalgia. Mas, em seu primeiro movimento, o mundo se parte e se desmorona: uma infinidade de clarões resplandecentes se oferecem ao conhecimento. É preciso desistir, para sempre, de reconstruir com isso a superfície familiar e tranquila que nos daria paz ao coração. Depois de tantos séculos de pesquisa, e de tanta abdicação entre os pensadores, sabemos bem que isso é verdadeiro para todo o nosso conhecimento. Exceptuando-se os racionalistas por profissão, hoje já não se tem esperança do verdadeiro conhecimento. Se fosse necessário escrever a única história significativa do pensamento humano, seria preciso fazer a dos arrependimentos e das impossibilidades. De quem e de que, de facto, posso dizer conheço isso? Este coração, em mim, posso experimentá-lo e julgo que ele existe. Este mundo, posso tocá-lo e julgo ainda que ele existe. Pára aí toda a minha ciência, o resto é construção. Porque, se tento agarrar este eu de que me apodero, se tento defini-lo e sintetizá-lo, ele não é mais do que uma água que corre entre meus dedos. Posso desenhar um por um todos os rostos que ele sabe usar, todos aqueles também que lhe foram dados, essa educação, essa origem, esse ardor ou esses silêncios, essa grandeza ou essa mesquinhez.
Mas não se adicionam rostos. Até este coração que é o meu continuará sendo sempre, para mim, indefinível. Entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa segurança, o fosso jamais será preenchido. Serei para sempre um estranho diante de mim mesmo. Em psicologia, como em lógica, há verdades mas não há verdade. O conhece-te a ti mesmo de Sócrates tem tanto valor quanto o sê virtuoso do nossos confessionários. Revelam uma nostalgia, ao mesmo tempo que uma ignorância. São jogos estéreis sobre grandes assuntos. São legítimos apenas na medida exacta em que são aproximativos. Eis aí também as árvores e conheço suas rugas, eis a água e experimento-lhe o sabor. Esses perfumes de relva e estrelas, a noite, certas tardes em que o coração se descontrai, como eu negaria o mundo de que experimento o poder e as forças? Contudo, toda a ciência dessa terra não me dará nada que me possa garantir que este mundo é para mim. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-lo. Vocês enumeram suas leis na minha sede de saber, concordo que elas sejam verdadeiras. Vocês desmontam o seu mecanismo e minha esperança aumenta. Por último, vocês me ensinam que esse universo prestigioso e colorido se reduz ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao eléctrão. Tudo isso é bom e espero que vocês continuem. Mas vocês me falam de um invisível sistema planetário em que os elétrões gravitam ao redor de um núcleo. Vocês me explicam esse mundo com uma imagem. Reconheço, então, que vocês enveredam pela poesia: nunca chegarei ao conhecimento. Tenho tempo para me indignar com isso? Vocês já mudaram de teoria. Assim, essa ciência que devia me ensinar tudo se limita à hipótese, essa lucidez se perde na metáfora, essa certeza se resolve como obra de arte. Para o que é que eu precisava de tantos esforço? As doces curvas dessas colinas e a mão da tarde sob este coração agitado me ensinam muito mais. Compreendo que se posso, com a ciência, me apoderar dos fenómenos e enumerá-los, não posso da mesma forma apreender o mundo. Quando tiver seguido com o dedo todo seu relevo, não saberei nada além disso. E vocês me levam a escolher entre uma descrição que é certa, mas que não me informa nada, e hipóteses que pretendem me ensinar, mas que não são certas. Estranho diante de mim mesmo e diante desse mundo, armado de todo o apoio de um pensamento que nega a si mesmo a cada vez que afirma, qual é essa condição em que só posso ter paz com a recusa de saber e de viver, em que o desejo da conquista se choca com os muros que desafiam seus assaltos? Querer é suscitar os paradoxos. Tudo é organizado para que comece a existir essa paz envenenada que nos dão a negligência, o sono do coração ou as renúncias mortais». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT