quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cante Alentejano. Poesia. «A vida, encarada como brincadeira, de incidências perigosas, é neste caso assimilada ao sono, e mais valendo que o seja. Que isto seja dito com a leveza de um conteúdo familiar harmónico, em coro de tragédia burguesa doméstica…»

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O sono de João
«O João dorme... (O Maria,
diz àquela cotovia
que fale mais devagar:
não vá o João acordar...)

Tem só um palmo de altura
e nem meio de largura:
para o amigo orangotango
o João seria..., um morango!
Podia engoli-lo um leão
quando nasce! As pombas são
um poucochinho maiores...
Mas os outros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! fala mais baixinho...
E tu, Mãe!, e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
que fale mais devagar:
não vá o João acordar...

O João dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente
teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
pode levar-te a maré:
tu mal sabes o que isto é...


Ó Mãe, canta-lhe a canção,
os versos do teu Irmão:
Na vida que a Dor povoa,
há só uma coisa boa,
que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir.

Deixa-o dormir, até ser
um velhinho…, até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
a teu lado (estou-o vendo
João!, que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...

Depois, um dia virá
que (dormindo) passará
do berço, onde agora dorme,
para outro, grande, enorme:
e as pombas que eram maiores
que João..., ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
que fale mais devagar:
não vá o João acordar...

E os anos irão passando.


Depois, já velhinho, quando
(serás velhinha também)
perder a cor que, hoje, tem,
perder as cores vermelhas
e for cheiinho de engelhas,
morrerá sem o sentir,
isto é, deixa de dormir:
acorda e regressa ao seio
de Deus, que é donde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
que fale mais devagar:

não vá o João acordar...»
Poema de António Nobre, (Porto, 1967-1900)

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